Grupo xamânico diz que usou veneno de sapo em situação ‘eventual’ e que não tem ‘mais qualquer ligação com a substância’

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Em nota publicada nas redes sociais, o Instituto Xamanismo Sete Raios diz que o ‘uso religioso’ do psicodélico, conhecido como ‘bufo’, foi ‘uma situação eventual e episódica’. Participantes de rituais afirmam que não foram informados sobre a ilegalidade do veneno e relatam efeitos adversos, como crises de ansiedade e pensamentos suicidas. Captura de tela de foto postada no Instagram de Mauricio Ferro, integrante do Xamanismo Sete Raios. No canto direito, é possível ver Felipe Rocha, fundador do instituto. Até a tarde do dia 14/04, a imagem ainda estava disponível no perfil de Mauricio.
Reprodução Instagram
O grupo Instituto Xamanismo Sete Raios, acusado de aplicar o veneno de um sapo com substância psicodélica proibida no Brasil, afirma que “não possui mais qualquer ligação” com o psicodélico. Participantes de rituais dizem que não foram avisados sobre a ilegalidade da substância.
“Nosso uso religioso do bufo alvarius foi uma situação eventual e episódica, que cessou tão logo recebemos orientação jurídica”, afirma o instituto em uma postagem em seu perfil nas redes sociais.
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Entenda o caso
Popularmente conhecido como “bufo”, o veneno do sapo Bufo alvarius (renomeado Incilius alvarius) seca quando extraído e pode ser inalado, liberando, entre outras substâncias, o psicodélico 5-MeO-DMT, proibido pela Anvisa no Brasil.
Participantes de rituais promovidos pelo grupo Xamanismo Sete Raios relatam terem participado de sessões com o uso da substância ao longo de 2021.
Em todos os relatos ouvidos pelo g1, um padrão se repete:
os participantes não foram informados sobre a ilegalidade da substância;
não assinaram termos de responsabilidade;
não foram acompanhados depois das sessões;
quando questionaram os integrantes do Xamanismo Sete Raios a respeito de efeitos adversos posteriores, ouviram se tratar de algo “normal”.
O grupo Xamanismo Sete Raios é alvo de inquérito da Polícia Civil de São Paulo, que apura possível crime de tráfico de drogas. Segundo a polícia, o Departamento de Investigações sobre Narcóticos segue realizando diligências para o esclarecimento dos fatos.
Um outro inquérito chegou a ser aberto para apurar a prática de curandeirismo, mas foi arquivado por falta de provas.
O grupo também alega que a autora da ação de reparação de danos material e moral contra o instituto, Gabriela Augusta Silva, é advogada e “acusa o grupo de manejar uma substância ilícita, quando ela própria não poderia alegar o desconhecimento da lei nesse sentido”.
Gabriela, que é de Goiás, afirma que em nenhum momento foi informada pelos integrantes do grupo de que o psicodélico 5-MeO-DMT é uma substância proibida no país. Ela afirma que só soube ao procurar ajuda médica. Diante de repetidas crises de ansiedade e pânico, pensamentos suicidas e problemas respiratórios, ela chegou a ser internada em um hospital neurológico e passou a frequentar o psiquiatra depois de inalar o veneno.
O grupo também acusa de perseguição religiosa Gabriela e seu marido, Rafael Verçosa, que denunciaram as práticas do instituto. Eles negam a acusação.
“Intolerância religiosa é crime — e todas as injúrias promovidas pelo casal, na sua ânsia persecutória, serão oportunamente debatidas e esclarecidas perante a Lei”, diz a nota publicada pelo instituto.
“O Xamanismo Sete Raios é uma fundação religiosa que há 10 anos reverencia e apoia diretamente a cultura originária e os povos da Amazônia, por meio de doações recorrentes, da conscientização sobre os direitos indígenas e num trabalho de fortalecimento da cultura e da sabedoria ancestral”, afirma o texto do grupo.
O grupo classificou, na mesma postagem, a reportagem do g1 de “enviesada e sensacionalista”.
Para a reportagem, o g1 entrevistou duas mulheres que relataram problemas após o consumo do Bufo alvarius, ouviu a Anvisa, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, a Polícia Civil de São Paulo e três especialistas. Os integrantes do instituto Xamanismo Sete Raios foram procurados antes da publicação da reportagem e indicaram a advogada que os representa; ela foi ouvida, e a nota enviada foi publicada na íntegra –também antes da publicação do texto.
Efeitos da substância
Pessoas relatam sequelas graves após ritual de grupo xamânico com substância proibida
Quando inalada, a 5-MeO-DMT produz intensas experiências psicodélicas, que podem incluir alucinações. Em estudos observacionais, participantes relataram sentimentos de unidade com os outros e com o ambiente, além de sensações de dissolução de limites e do ego.
Em um desses estudos, voluntários saudáveis que usaram a secreção do Bufo alvarius apontaram melhoras em sintomas de depressão, ansiedade e estresse após uma única inalação.
Entre os efeitos adversos observados estão medo, tristeza, ansiedade, paranoia, além de problemas cardiovasculares e respiratórios.
Mas foram os potenciais benefícios que aumentaram a popularidade do “bufo” em retiros no México – onde é legal – e nos Estados Unidos – onde a substância é proibida, assim como no Brasil.
Ainda precisam ser feitos estudos científicos com maior número de voluntários para melhor compreensão dos benefícios e dos riscos.
“O que a gente já sabe sobre os efeitos da 5-MeO-DMT está muito alinhado com o que sabemos sobre os efeitos de outras substâncias psicodélicas”, afirma Dráulio Araújo, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e pesquisador dos efeitos da ayahuasca há 20 anos.
O instituto, que é referência em pesquisas com psicodélicos, não trabalha com a 5-MeO-DMT, mas com substâncias similares da classe das triptaminas.
“Do ponto de vista físico, está muito claro que essas substâncias não matam, não causam overdose e não causam tolerância [dependência química], mas claro que há grupos de risco”, diz ele.
“Nada é seguro para todo mundo, nada é para todo mundo.”
Já do ponto de vista psicológico, explica o pesquisador, os usuários podem ter diferentes experiências marcantes e significativas, por isso, preparação anterior e acompanhamento posterior são essenciais.
“Particularmente no 5-MeO-DMT, é comum pessoas relatarem que tiveram a sensação de que morreram. Não é trivial”, diz ele.
Segundo Araújo, uma experiência psicodélica segura precisa garantir:
a pureza da substância utilizada, seja ela qual for, e a dose adequada;
indivíduos aptos para o uso – no laboratório do Instituto do Cérebro, pessoas com doenças cardiovasculares, gravidez, depressão, transtorno bipolar e risco de esquizofrenia não entram nos estudos, por exemplo;
condições adequadas para o uso, que incluem ambiente seguro e acompanhamento prévio e posterior – seja em uma pesquisa científica ou no contexto religioso. Araújo dá o exemplo de igrejas que administram ayahuasca – autorizada no Brasil para uso religioso – de forma responsável, com protocolos específicos.
Neoxamanismo
Parte do material de divulgação do Xamanismo Sete Raios sobre o ‘bufo’ recebido por Gabriela, Franciele e outras pessoas ouvidas pelo g1.
Reprodução
O instituto Xamanismo Sete Raios realiza rituais individuais, atendimentos e retiros coletivos de diferentes tipos – como reiki, meditação guiada, tarô e o que chamam de “limpeza xamânica” com o uso de ervas.
No portfólio, há práticas inspiradas no neoxamanismo norte-americano, mas também referências a “medicinas da floresta”, como o rapé e a ayahuasca – tradicionalmente usados por povos indígenas na Amazônia. Também oferecem cursos do que chamam de xamanismo.
Em seu site, o instituto define o xamanismo como uma “jornada espiritual de conexão com a nossa divina Natureza”, um “caminho de retorno à Infinita Essência do Ser”.
Para a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que há mais de 30 anos realiza pesquisa de campo entre os Wari’, povo indígena do Sudoeste Amazônico, as principais diferenças entre o xamanismo amazônico, praticado há séculos por comunidades indígenas, e o exposto pelo instituto são as ideias de indivíduo e de natureza.
“No xamanismo amazônico, não existe o ‘eu’, existe um mundo relacional, onde o xamã se relaciona com diversos outros seres – e não para cura pessoal, mas para refazer relações, pensar relações. É um processo social, não de descoberta pessoal. Também não existe essa ideia de ‘natureza’, existe só vários tipos de gentes [humanas e não humanas], mas não essa separação entre nós e a natureza”, explica Aparecida.
O fundador do Xamanismo Sete Raios, Felipe Rocha, afirma em sua descrição ter sido “iniciado na tradição das plantas mestras pelos povos Shipibo e Ashaninka, na Amazônia Peruana”. Ele também se diz “terapeuta xamânico formado pela Escola de Xamanismo Paz Géia”.
Já Mauricio Ferre, integrante do grupo, se descreve nas redes sociais como “aprendiz no caminho xamânico” e “terapeuta integrativo e facilitador de Medicinas Ancestrais”.
Aparecida explica que, nas tradições amazônicas, pessoas passam por um longo caminho para adquirirem os conhecimentos e as experiências necessárias a fim de se tornarem xamãs. Esse caminho costuma ter início por um chamado nos sonhos – caso do xamã Yanomami Davi Kopenawa, como ele descreve em detalhes no livro “A Queda do Céu”.
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