Deltan Dallagnol e o TSE: uma decisão acertada

Na última sexta-feira (19), o professor Miguel Gualano de Godoy escreveu neste JOTA a respeito da sentença que cassou o mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) para apontar de maneira muito clara e objetiva o que considera os erros da decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aproveito esta oportunidade para exercitar minha discordância pública em relação aos argumentos do professor na esperança de poder trazer mais luz para o problema enfrentado pelo TSE.

Ao contrário do que se passa na esfera pública nacional, o professor Miguel não classificou a decisão – unânime – de “erro bisonho”, nem insinuou que os que concordam com ela seriam jejunos ignorantes ou sujeitos academicamente desclassificados. Além disso, não acredito que ele vá me processar por discordar de sua posição ou algum comentário mais duro que eu faça, como tem se tornado, infelizmente, praxe no debate público nacional.

É justamente por isso, nesse ambiente de debate substantivo e respeito aos rituais acadêmicos, que ouso lançar aqui minha discordância em face de um dos mais destacados professores de Direito Constitucional do país, alguém que certamente entende muito mais do assunto do que eu.

Minha ousadia se explica, neste caso, porque para discordar do professor não é necessário fazer reparos a nenhum de seus argumentos, que são irretocáveis. Sim, é verdade que não havia Processos Administrativos Disciplinares (PADs) em andamento e, ao cassar a candidatura de Dallagnol, o TSE criou uma hipótese não prevista expressamente em lei para justificar a cassação.

Sim, é verdade que, ao afirmar que as representações disciplinares existentes poderiam virar PADs, os quais poderiam dar lugar à condenação do então membro do Ministério Público Federal, o TSE faz um exercício de futurologia.

Sim, é verdade que não é possível supor, com certeza, que o então membro do MPF pediu exoneração para fraudar a lei. Sim, é verdade que foram cerceados os direitos políticos de Deltan Dallagnol em nome de uma interpretação inovadora da lei. Finalmente, sim, é verdade que em caso de direitos fundamentais os tribunais devem, regra geral, adotar interpretações literais da lei para não criar limites onde o legislador não o fez expressamente.

Ocorre que este caso não é um caso qualquer. Não estamos lidando com um cidadão comum: as características do caso sugerem que os raciocínios utilizados para lidar com um cidadão comum, explanados com precisão pelo professor Miguel, não se adequam a ele. Explico.

Estamos diante de um dos protagonistas da Lava Jato, operação que se propôs a investigar uma série de casos de corrupção em nosso sistema político e, por tabela, ajudou a borrar ainda mais a já controversa fronteira entre direito e política. Sem entrar na análise de seus acertos e erros, a operação ocupou as manchetes e teve destaque em todos os meios de comunicação nacional por anos a fio, muito em razão de estratégias de ação inéditas do Ministério Público Federal, que colocaram o “parquet” na posição de vanguarda no combate à corrupção.

Tais ações foram, diga-se, objeto de análise acadêmica recente que defende que o MPF inovou no que diz respeito à concepção tradicional do princípio da separação de Poderes (ver Vontade do povo como perversão: uma visão crítica do papel do Ministério Público a partir da Operação Lava Jato, de Patrícia Spaniolo Parise Costa, editora LiberArs, 2022).

Não vou entrar aqui nas minúcias da atuação do MPF e das sentenças do juiz Sergio Moro, mas acho que é razoável dizer, a esta altura do campeonato, que a decisão do então procurador e do então juiz de entrarem para a política, sob a alegação de que a operação estava sendo desmontada por determinadas forças políticas, joga um véu de dúvidas sobre sua atuação na condição de funcionários públicos.

Os dois têm sofrido críticas ácidas, críticas que questionam sua isenção na condução da operação e de seus desdobramentos, justamente por terem se juntado às forças políticas que foram as maiores beneficiadas pelas prisões e condenações da Lava Jato. Muitos defendem que o juiz e o procurador que condenaram os réus em uma atuação controversa, a qual levantou uma série de indagações teóricas e acusações disciplinares, beneficiaram-se pessoalmente de seu trabalho ao triunfar eleitoralmente sobre o ocaso político temporário dos réus que eles ajudaram a condenar.

Tal suspeita é ainda maior em face da anulação de uma das sentenças do então juiz Moro pelo Supremo Tribunal Federal (STF), justamente a sentença que teria resultado de conluio entre ele e a acusação, protagonizada pelo procurador Deltan Dallagnol.

Por isso mesmo, a meu juízo, o TSE não estava diante de um simples cidadão, mas de uma figura de destaque na história recente do país, uma figura que levantou controvérsias graves a respeito da relação entre direito e política em razão de sua atuação vanguardista – para alguns, temerária – à frente do Ministério Público.

Por isso mesmo, todos os detalhes de sua atuação, inclusive seu pedido de exoneração para concorrer a um cargo público, são relevantes para o julgamento do caso. A meu ver, o TSE não julgou apenas o cidadão Dallagnol, já exonerado do Ministério Público, mas também o procurador Dallagnol e a sua exoneração do MP. E o tribunal proferiu uma sentença inovadora, sim, mas em razão das circunstâncias do caso.

Nem sempre a interpretação literal da lei deve prevalecer, caso não seja adequada para as características do caso concreto. É atribuição do Judiciário atualizar o sentido da lei em casos concretos que o legislador não poderia ter antecipado, afinal, a produção legislativa jamais será capaz de prever todos os casos futuros. A realidade social será sempre bem mais complexa do que o legislador é capaz de supor. O Judiciário sempre trabalha com leis antigas em relação aos fatos sociais.

Quem poderia prever, antecipadamente, algo como a Operação Lava Jato? Mais ainda, quem poderia prever que seus principais protagonistas decidiriam tentar a carreira política ao lado das forças beneficiadas pelas condenações das quais eles mesmos tomaram parte?

A legislação eleitoral, como toda legislação, foi elaborada para lidar com casos normais, casos que se adequem aos padrões de conduta desenhados por ela. Em casos fora da curva, que discrepem do padrão geral de forma significativa, é necessário adotar uma interpretação conforme suas características, mesmo que isso exija interpretar a lei de forma inovadora.

Alguém poderia dizer: mas não seria melhor esperar o legislador se manifestar ao invés de fugir da literalidade do texto legal? Não seria mais seguro para as pessoas em geral contar com juízes e juízas que se limitassem a aplicar mecanicamente o sentido literal dos textos legais? Há quem defenda essa posição e com muito bons argumentos. Trata-se de uma posição que, aparentemente, confere à sociedade mais segurança jurídica e dá mais peso ao legislador do que ao juiz.

Não é o meu caso e, acredito, também não é o caso do professor Miguel. Não defendo essa visão do direito em geral e muito menos diante do caso concreto que estamos examinando. Em relação ao caso, eu e o professor Miguel divergimos.

Acredito que, justamente, a função do Judiciário é fazer justiça ao caso concreto e não julgar conforme padrões abstratos rígidos que não levem em conta a singularidade dos casos. Exagerando um pouco o argumento, o furto de um tomate cereja, por exemplo, não deve ser tratado como o furto de R$ 50 mil. O Judiciário deve desenvolver instrumentos, sob pena de comprometer sua legitimidade perante a sociedade, para não condenar quem furta um tomate cereja, por exemplo, à teoria da insignificância em matéria penal.

Assim, podemos afirmar que a sentença que condenasse o ladrão de um tomate cereja estaria extrapolando o que podemos chamar de a finalidade da lei. A lei penal e todo o gasto público necessário para efetivar esta legislação – da polícia até as cadeias, passando pelo Judiciário – não foram pensados para lidar com casos irrelevantes como esse.

Mas é claro, sempre que o Judiciário se entregar à tarefa de adequar a lei ao caso, ele tem o dever de se justificar detalhadamente. Não pode haver decisão, trivial ou inovadora, sem justificação. No entanto, cabe dizer, decisão literal não é sinônimo de decisão técnica. Em muitos casos, como no caso Deltan Dallagnol, uma decisão literal seria uma má decisão.

No caso, insisto, com o perdão da repetição, mesmo em se tratando de direitos fundamentais, o TSE tomou a decisão acertada. Ao fim e ao cabo, o caso trata do respeito à soberania popular, fonte de toda legitimidade do Estado. Afinal, tanto no que diz respeito à eleição do deputado como quanto ao exercício de cargo público, está em jogo a mesma vontade do povo. No primeiro caso, sob a forma de soberania popular via voto e, no segundo, sob a forma de fonte de legitimidade e critério para o exercício de cargo público, que não pode ser usado para fins políticos ou pessoais.

Fique bem claro: se estivéssemos falando de um cidadão comum que exercesse outras funções, funções que não se legitimam diretamente na vontade popular, minha interpretação seria diferente. Eu seguiria integralmente a interpretação do professor Miguel. No entanto, não é esse o caso e, por isso mesmo, faz sentido ampliar as hipóteses de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa e fazer futurologia para cassar o agora ex-deputado Dallagnol.

Nas hipóteses em que funcionários públicos agem de maneira inovadora, possivelmente ao arrepio da lei que rege a sua função, especialmente em casos de importância política, certamente pode-se esperar que surgirão pedidos de sindicância e eventuais processos administrativos. A inovação é a mãe da controvérsia e da litigância. É normal que inovadores enfrentem resistência e sejam acusados, justa ou injustamente, de andarem contra as leis.

A meu juízo, o TSE decidiu que alguém que ocupa função pública e age de forma vanguardista, adentrando zonas cinzentas de competência e utilizando procedimentos não usuais, não deve ser autorizado a sair da carreira antes de esgotar o debate interno sobre sua atuação. Essa pessoa deve se responsabilizar até o fim pelos riscos que criou; deve colaborar para que se esclareça, até o fim, a legalidade ou ilegalidade de suas ações.

Pois o que está em jogo, no caso, não são apenas os direitos individuais do cidadão Dallagnol. Está em jogo a legitimidade do Ministério Público, do Judiciário e do Estado democrático de Direito em geral. Está em jogo a separação dos Poderes e a fronteira entre direito e política.

No caso, o ex-deputado Dallagnol não pode ser tratado, ainda mais em matéria eleitoral, como um mero cidadão, como um simples indivíduo. Ele se parece mais com a figura de universal concreto hegeliana, alguém cuja ação individual guarda um sentido universal e repercute universalmente.

Em caso de entendimento contrário, o TSE deixaria aberta uma larga avenida para que profissionais públicos resolvessem atuar de maneira temerária, possivelmente ao arrepio da lei, já prevendo uma porta de saída de impunidade pela via da eleição para um cargo público.

Insisto: parece estar claro que, pela existência de tantos pedidos de investigação no âmbito interno e controvérsias sobre eles, que o assunto estava longe de ser resolvido e não havia clareza, nem mesmo dentro da carreira, sobre a legalidade de tudo o que foi feito.

A favor da interpretação adotada pelo TSE está um de seus efeitos centrais: sinalizar para as carreiras públicas que a prática reiterada de atos de legalidade duvidosa por seus membros, ainda mais em procedimentos de grande relevância política e amplamente divulgados para a esfera pública, será investigada e eventualmente punida exemplarmente. O julgamento do TSE, a meu ver, sinaliza, com clareza, que o “modus operandi” Lava Jato não é o mais adequado para combater a corrupção.

Afinal, quem instrumentalizar cargo público para fins pessoais ou políticos age contra lei e, por via de consequência, contra a vontade do povo. Insisto, o debate no interior das instâncias disciplinares do Ministério Público mostra que paira essa dúvida sobre a atuação do deputado eleito. O TSE não julgou apenas o cidadão Dallagnol, mas também um ex-membro do Ministério Público que deixou a carreira antes do tempo necessário para terminar de prestar contas sobre a sua atuação.

Vale lembrar também que o desfecho das investigações poderia ter efeito sobre o voto popular: como elas não terminaram, não saberemos nunca. Também por isso o TSE decidiu, draconianamente, e muito bem, que meras representações devem ser esgotadas antes de que um membro do Ministério Público possa se candidatar a um cargo público.

A carreira pública, de fato, impõe limites aos indivíduos, especialmente no que diz respeito à atividade política, sempre em nome do seu fundamento na vontade popular. De fato, a Lei da Ficha Limpa já foi extremamente rigorosa com estas carreiras ao proibir candidaturas quando houver PADs em andamento. No caso, o rigor adicional – proibir a candidatura em razão da existência de se simples representações – justifica-se em face das circunstâncias do caso. De fato, o TSE fez questão de abrir um abismo entre a função de promotor e a carreira política. E deixou claro que é a carreira e não cada membro individual do Ministério Público Federal o responsável por dizer qual é o sentido da vontade popular na atuação do “parquet”.

O ex-deputado Dallagnol deixou o MPF 11 meses antes do necessário, o que seria razoável para preparar uma campanha política. Isso não importa, decidiu o TSE: não é razoável que alguém saia ou permaneça promotor apenas quando convier a seus planos pessoais. Seu dever em face da vontade popular, que justifica e legitima seu cargo, deve vir antes de seus planos individuais.

A unanimidade da decisão é eloquente e não pode ser lida como política, ao menos não como expressão de preferência político-eleitoral. Trata-se de uma decisão sobre os destinos do sistema de justiça como um todo.

Uma crítica permanece: como é comum no direito brasileiro, julgo que a decisão deveria ter justificado melhor as suas escolhas. Nossa cultura jurídica, infelizmente, não pratica com afinco o esporte da justificação de decisões, como mostro em meu livro Como decidem as cortes (FGV Editora, 2013).

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