Da Serra do Baturité, nova cobra-cipó é descrita pela ciência e recebe nome de líder abolicionista

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Após análise morfológica e molecular, cientistas atualizaram classificação taxonômica do réptil. Chironius dracomaris homenageia Francisco José do Nascimento. Chironius dracomaris ocorre no Maciço do Baturité, no centro-norte do Ceará
Thabata Cavalcante dos Santos (Museu de História Natural do Ceará / Universidade Estadual do Ceará)

Descrita por oito cientistas brasileiros em janeiro deste ano, a cobra-cipó Chironius dracomaris já era parte de uma conhecida população da Serra do Baturité, localizada no centro-norte do Ceará.
No entanto, antes da publicação do artigo na revista alemã Vertebrate Zoology, a espécie fazia parte do complexo Chironius bicarinatus, que inclui outras duas serpentes: C. bicarinatus e C. gouveai. Sendo assim, a nova cobra esteve até então sem uma classificação taxonômica adequada.
De acordo com um dos autores do artigo Paulo Passos, professor associado e curador das Coleções de Répteis do Museu Nacional (UFRJ), foi necessário analisar dados morfológicos (contagem de escala, morfometria, padrão de cor) e moleculares de uma amostra de 485 espécimes do complexo, o que significou cobrir toda sua distribuição.
“Ela tem uma ampla distribuição na região costeira do Brasil. A partir dessa revisão taxonômica, a gente identificou que essa população que vive nessa região serrana do Ceará era distinta da população aqui do Sul da Bahia pra baixo”, sintetiza.
Cores da espécie variam entre verde, oliva, branco e preto
John Allyson Andrade Oliveira (Museu de História Natural do Ceará / Universidade Estadual do Ceará)
Segundo os cientistas, Chironius dracomaris habita uma região de floresta tropical com distribuição restrita e isolada no domínio seco da Caatinga. De acordo com modelos de projeção utilizados pela equipe, trata-se de uma espécie isolada há pelo menos 120 mil anos.
Homenagem
Paulo diz que a intenção de Vinicíus Sodré, autor principal do artigo, foi homenagear o “Dragão do Mar”, Francisco José do Nascimento, líder abolicionista do Ceará e demais líderes de resistência negra.
“Ele teve essa iniciativa e eu ajudei ele a construir a etimologia do nome, não ficando restrito só à figura do dragão do mar. A gente sempre tenta, nesses pequenos momentos de liberdade, que é na escolha do nome, fazer uma homenagem aos povos originários e outras parcelas menos privilegiadas da sociedade”, explica o pesquisador.
Conhecido como Dragão do Mar, jangadeiro Francisco José do Nascimento foi incorporado à ‘propaganda’ do movimento abolicionista
André Valente/BBC
Segundo a publicação, o termo dracomaris é a conjunção de dois substantivos “draco” (nominativo) e “maris” (genitivo), usados em oposição ao apelido latinizado “Dragão do Mar”, como Francisco José do Nascimento (1839–1914) ficou historicamente conhecido.
Francisco foi um líder popular dos pilotos portuários do Ceará, que se tornou um símbolo da resistência nordestina contra a escravidão no Brasil. Em 1881, liderou um dos principais movimentos de paralisação portuária, recusando-se a transportar escravos para os navios, evitando assim o tráfico interprovincial.
Os sucessivos fechamentos do porto aceleraram o abolicionismo na região, o que fez do Ceará a primeira província brasileira a banir a escravidão, em 25 de março de 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea (Morel 1967).
Diferenciação
Mas como a ciência é capaz de dizer, com precisão, que uma espécie é diferente da outra? No geral, são feitas análises de diferentes tipos e todas devem coincidir com a mesma hipótese para que, de fato, seja descrita de uma nova espécie (ou táxon, como sinônimo).
Paulo explica que a espécie da Serra do Baturité é menor em tamanho, tem diferenças de coloração, tem diferenças na morfologia hemopeniana (órgão copulatório dos machos) e também difere na estrutura molecular.
“Fizemos uma filogenia molecular e tivemos evidências da relação de parentesco dessa população com as demais da Mata Atlântica. Em paralelo, fizemos uma modelagem de nicho, que são variáveis ambientais relacionadas à distribuição potencial das espécies”, conta ele.
A partir disso, foram separadas as seguintes espécies:
Chironius bicarinatus: composto por exemplares oriundos de florestas costeiras desde o sul do rio São Francisco (no Sergipe) até a Serra do Tabuleiro (em Santa Catarina);
Chironius gouveai: continha exemplares do interior da Serra do Mar, em altitudes mais elevadas nos Pampas, Florestas Mista e Semidecidual, abaixo do Rio Paranapanema e limitado a oeste pelo Rio Paraná;
Chironius dracomaris: inclui exemplares restritos ao “Brejo de Altitude” do Maciço de Baturité (no Ceará), acima do rio São Francisco, entre 500 e 800 m de altitude. Os registros conhecidos ficam nos municípios de Baturité, Guaramiranga e Pacoti.
A espécie
De acordo com o artigo, a nova cobra-cipó não é peçonhenta, sendo inofensiva aos seres humanos. Por outro lado, há indícios de que ela pode ter uma toxina que ajuda na captura de anfíbios anuros (sapos, pererecas e rãs) e outras presas.
“É uma proteína similar a das serpentes que são venenosas para a gente, talvez tenha a mesma origem, mas na linhagem das cobras-cipós isso foi se perdendo e se manteve só para as presas”, complementa Paulo Passos.
Nova espécie é parente das serpentes Chironius bicarinatus e Chironius gouveai
John Allyson Andrade Oliveira (Museu de História Natural do Ceará / Universidade Estadual do Ceará)
Em relação ao fenótipo, a espécie possui dorso uniforme verde ou oliva com duas listras dorsolaterais pretas, ventre com partes esbranquiçadas e não possui presas.
“Não há dentição especializada para inoculação. Aparentemente, elas são capazes de produzir uma toxina do mesmo grupo das serpentes venenosas, mas o veneno escorre externamente. Ou seja, elas não apresentam uma conexão entre a glândula de veneno e os dentes, por não terem presas especializadas”, acrescenta.
Além de Vinícius Sodré e Paulo Passos, assinaram o artigo os cientistas Albedi Andrade-Junior e Manuella Folly do Museu Nacional; Josué Azevedo, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia; Robson Waldemar Ávila, da Universidade Federal do Ceará; Felipe Franco Curcio, da Federal do Mato Grosso e Pedro Sales Nunes, da Federal de Pernambuco.
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