Heróis judiciais: a difícil tarefa de se manter no Parlamento após atacar a política

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Na semana passada, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) surpreendeu o país com a decisão unânime de cassação do deputado federal mais votado do Paraná, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol. A decisão considerou que Dallagnol pediu exoneração do MPF para não ser alvo de processo administrativo que poderia torná-lo inelegível, fundamentando-se na alínea “k” e “q” do artigo 1º, inciso 1º da Lei da Ficha Limpa, não tendo sido poupada de críticas por supostamente ter aplicado interpretação extensiva, uma vez que não havia processos administrativos disciplinares ativos, mas sim apurações preliminares em curso. Para além dos debates eminentemente jurídicos, esta coluna resolveu abordar o caso Dallagnol pelos aspectos que oferece à ciência política. É sobre eles que iremos sucintamente refletir.

Na república dos bacharéis, a política e o direito são amigos de longa data da cena brasileira. Desde a Constituinte de 1988, candidatos oriundos das carreiras jurídicas estatais sempre estiveram presentes na disputa eleitoral, a exemplo dos movimentos mais recentes como a Frente da Lava Jato, com a candidatura  de agentes e de delegados da Polícia Federal. Repetindo-se uma característica presente na própria formação do Estado brasileiro, a presença de políticos oriundos da esfera jurídica em conjunto com políticos oriundos das forças repressivas, como polícias e Forças Armadas, formam um déjà vu dos distintos períodos autoritários pelos quais o país passou e ainda remanescentes na jovem democracia brasileira.

Desde a Emenda Constitucional 45/2004, há uma vedação expressa a que procuradores e promotores de justiça concorram a cargos eletivos, salvo se pedirem exoneração de suas respectivas funções. No entanto, os ganhos de autonomia e independência e as atribuições conferidas pela Constituição acabam por legitimar sua atuação na sociedade, como defensores do regime democrático. O empoderamento institucional é uma das causas a explicar o movimento de ingresso desses burocratas na arena política, incentivados a deixar para trás a autoridade que seus cargos nas instituições judiciais lhes conferiam, para entrar na política tradicional, território daqueles que costumavam atacar.

Mas Deltan não se restringe ao tradicional fenômeno da república dos bacharéis, uma vez que também representa as bancadas evangélicas, cujo conservadorismo revela-se com uma faceta externada em sua agenda pessoal na batalha anticorrupção. O fenômeno não se delimita, tampouco, ao contexto brasileiro. Os chamados judicial heroes são figuras políticas conhecidas e reconhecidas, catapultadas à política após conduzirem e desempenharem papel fundamental na persecução de grandes escândalos de corrupção, como foi a Operação Lava Jato e tantas outras pelo mundo.

A literatura considera um herói judicial “aquele que é motivado pela missão de reconstruir as instituições sociais e ajudar a transformar a burocracia e seus acordos institucionais em uma expressão de justiça”[1], estando aliado à acepção da construção “mítica de herói”, que destaca o papel de determinados atores na promoção da mudança institucional a partir de seus próprios interesses, chegando a seu antagonismo, expresso pelos movimentos de resistência ou oposição deliberada a ações desse herói, surgindo o anti-herói.

Ainda que focado no protagonismo de burocratas e no seu papel de liderança, o conceito não se reduz ao campo judicial. Outros trabalhos exploram a mesma noção, desde a ideia de voluntarismo político, de empreendedores de políticas públicas a articuladores de redes de coalização política. No campo da corrupção, o olhar recai sobre as disputas entre o ingresso de atores políticos na arena judicial – alvos da persecução penal – e dos atores judiciais na arena política, em um movimento de backlash de reação dos atores políticos às ações da burocracia. A volatilidade da narrativa pode projetar outrora heróis a antagonistas e vice-versa.

Os heróis judiciais forjados pela atuação do sistema de justiça na luta anticorrupção acabam por herdar um capital político institucional diretamente de suas instituições de origem. É com esse capital que se lançam à política e tentam manter-se legitimados nela. Todavia, o capital de eleição é muito diferente do capital de manutenção no campo eleitoral, cujas redes e relacionamentos dependem de outros elementos, para além da chancela jurídica. Manter-se no legislativo implica em desenvolver habilidades políticas e negociais, enquanto equilibra a popularidade.

Sendo assim, se o capital do campo jurídico foi capaz de alçar Sergio Moro e Deltan Dallagnol ao Congresso Nacional, o peso para retirá-los é bastante leve, quase residual, porque lhes falta a trajetória e a bagagem da política propriamente dita, cujos capitais fizeram questão de atacar ao longo de sua atuação na persecução criminal da corrupção. Muito menos a agenda anticorrupção, abandonada pela política e escamoteada pelo próprio sistema de justiça parece ser suficiente para dar suporte e manutenção aos heróis no Parlamento.

Se no campo político Deltan foi facilmente rifado, é preciso olhar para o mundo das redes sociais para verificar como a nova ágora democrática vem lidando com a questão do impacto da decisão do TSE que cassou o mandato do deputado. Uma análise dos dados da conta do Instagram de Deltan nos últimos 30 dias revela um ganho de seguidores e uma ampliação na média de uploads nas últimas semanas; bem como um aumento muito expressivo de seguidores no seu canal no YouTube. Verifica-se um impacto fortíssimo e positivo no Instagram de Deltan no dia da decisão do TSE e no seguinte, mas este arrefece e já não apresenta o mesmo efeito no dia da live em que o deputado apareceu para comentar sua cassação.

É possível verificar conexões diretas entre o caso Deltan e a apropriação que outros eleitos do mesmo espectro tentam obter com o caso dele. Sergio Moro, por exemplo, tenta colar-se ao evento, tendo no Twitter um efeito de ampliação grande de seguidores nos dias concomitantes à cassação de Dallagnol. O clã Bolsonaro parece não sofrer qualquer alteração em suas redes, apesar do esforço de Eduardo Bolsonaro em aparecer colado ao ex-procurador em sua live do último dia 18.

Em que pese o prejuízo da perda do mandato de deputado federal, é possível deduzir que a decisão de sua cassação trouxe repercussões midiáticas proveitosas em termos de adesão nas redes sociais para ambos os judicial heroes. O mesmo não se pode afirmar sobre a própria fala de autodefesa de Deltan, que não impacta na sua popularidade nas mídias.

Esse efeito da repercussão da decisão judicial nas mídias sociais é conhecido de longa data pelos heróis judiciais e, ao que tudo indica, comporá sua nova estratégia política de capitalização de popularidade. Em sua live, o ex-deputado federal ataca com veemência o ministro Gilmar Mendes. Não se espera tal comportamento de alguém que tenta reverter uma decisão unânime no STF. Sua conduta é condizente com a estratégia de fortalecer sua figura de herói judicial, evidenciada pela adesão das mídias sociais no dia de sua cassação.

Há um último espaço de legitimação que merece destaque, que diz respeito justamente às instituições judiciais de onde saíram os recém-eleitos. Se Dallagnol não parece contar com o apoio das associações do Ministério Público neste momento, poder-se-á dizer o mesmo de Sergio Moro?

Os novos heróis judiciais da política brasileira possuem destreza em extrair das decisões judiciais o melhor resultado em termos de popularidade, especialmente porque conhecem com profundidade o sistema judicial, e a partir da experiência da Lava Jato, aprenderam a conduzir a mídia a seu favor. Em termos políticos, essa habilidade é como uma granada, que pode limpar o terreno para a escalada política, mas apenas se bem posicionada. A mais recente granada está posicionada entre a 13ª Vara Federal de Curitiba e o TRF4. O pino foi puxado e já vislumbramos a fumaça dos destroços. Resta saber quem aproveitará o saldo político.


[1] HENDRIANTO, Stefanus. Law and politics of constitutional courts: Indonesia and the search for judicial heroes. Routledge, 2018, nossa tradução, p. 14.

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