Ainda sobre a necessidade de uma nova cultura de solução de litígios no país

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Existem em tramitação na justiça estatal do Brasil cerca de 77 milhões de processos. É verdade que, em 2019, houve uma ligeira redução no estoque de processos, em comparação com 2018. Com efeito, conforme se extrai da apresentação do ministro Dias Toffoli ao Relatório Justiça em Números 2020:

“O Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam alguma solução definitiva. Tal número representa uma redução no estoque processual, em relação a 2018, de aproximadamente 1,5 milhão de processos em trâmite, sendo a maior queda de toda a série histórica contabilizada pelo CNJ, com início a partir de 2009”.[1]

Ainda assim, a morosidade do Judiciário brasileiro impressiona. O tempo médio de tramitação dos processos ainda pendentes de encerramento era, em 2019, de 5 anos e 2 meses. Na fase de execução, quando o que se postula é a entrega de um bem da vida, cujo direito encontra-se reconhecido por um título executivo (judicial ou extrajudicial), a tramitação demora na Justiça Federal, em média, 7 anos e 8 meses, e na Justiça Estadual 6 anos e 9 meses.[2]

O cenário retratado revela um Judiciário ineficiente, que não consegue cumprir o seu papel: de prover a paz social. Tudo fruto de uma cultura que sempre incentivou a judicialização dos litígios, sem conferir maior importância às vias extrajudiciais de solução de conflitos[3].

É verdade que, no campo do direito positivo, houve uma perceptível mudança no cenário normativo e regulatório, sobretudo a partir de 2015, com a aprovação do novo Código de Processo Civil (Lei 13.015/2015), com a reforma da Lei de Arbitragem (Lei 13.129/2015) e com a edição da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015). Mais recentemente, foi sancionada a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), que reservou todo um capítulo para a disciplina “dos meios alternativos de solução de controvérsias” (Capítulo XII, arts. 151 a 154).

Não obstante isso, a litigiosidade no país é ainda muito alta. A celebração de acordos na esfera judicial é em certa medida bastante excepcional, ocorrendo em apenas 12,5% dos conflitos submetidos ao Judiciário.[4] Várias são as explicações apontadas pela doutrina especializada para o nível (altíssimo) de litigiosidade hoje existente no Brasil.

Diz-se, nesse sentido, que a cultura do litígio seria fruto e efeito, dentre outros fatores: (i) da ausência, até bem recentemente, de marcos normativos claros e específicos disciplinando o uso das vias extrajudiciais de resolução de conflitos[5]; (ii) da inexistência de lideranças aptas a conduzir a mudança cultural necessária no sistema de justiça[6]; (iii) da previsão na legislação processual de estímulos excessivos  à judicialização dos conflitos[7]; e (iv) de um ensino jurídico voltado, historicamente, para a formação de profissionais do direito aptos para a atuação litigiosa, mas sem qualquer preparo para negociar, buscar o consenso ou se valer de práticas colaborativas.[8]

Nesse sentido, Eleonora Coelho defende que, para a “transformação da chamada ‘cultura do litígio’, objetivando a promoção e incentivo ao uso de métodos adequados de solução de conflitos”, seria essencial “(i) arcabouço legal eficaz; (ii) a renovação do ensino jurídico e da educação em geral e (iii) a cooperação do Poder Judiciário”.[9]

Sem sombra de dúvida, alguns passos importantes já foram dados para suprir as carências apontadas. Existe hoje todo um arcabouço normativo, em sintonia com as melhores práticas internacionais, direcionado para disciplinar e estimular a utilização dos métodos extrajudiciais de resolução de disputas no Brasil, começando pela Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), passando pelo já aludido Código de Processo Civil, até chegar à Lei de Mediação.

Em paralelo, importantes lideranças têm abraçado a causa das ADRs (Alternative Dispute Resolution) no Brasil[10], desde a marcante iniciativa do saudoso senador Marco Maciel, autor da Lei de Arbitragem.[11] Nos últimos anos, o protagonismo tem partido do próprio Judiciário, com especial destaque para o papel exercido pelo ministro Luiz Fux, do STF, na elaboração do novo Código de Processo Civil, e pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, a quem coube a presidência da Comissão de Juristas do Senado Federal que formatou os projetos da Lei de Mediação e da Reforma da Lei de Arbitragem.

Sem prejuízo disso, persistem outros importantes gargalos para a implementação de uma nova cultura de resolução de conflitos no país. Uma cultura do litígio que seja mais harmoniosa e menos beligerante. Em especial, reformas legislativas ainda se fazem necessárias, notadamente para desestimular a judicialização de disputas, quiçá com a criação de uma fase pré-processual de conciliação obrigatória[12], seja ampliando os custos envolvidos para os demandantes[13] (e.g., restringindo a gratuidade de justiça para os verdadeiramente vulneráveis; impondo ônus sucumbenciais nos juizados especiais; penalizando os litigantes contumazes etc.).

Além disso, há uma deficiência significativa no ensino jurídico brasileiro, no campo das ADRs. De fato, o estudante de direito brasileiro “sai da faculdade pronto para litigar. É treinado para isso. Conhece muito bem o Código de Processo Civil. Sabe perfeitamente como ajuizar uma ação e como recorrer. Mas não sabe como construir consensos, como negociar, como buscar acordos”.[14]

Estudo[15] feito nas grades curriculares da graduação em direito de 15 faculdades públicas e privadas do país confirma que o ensino jurídico no Brasil tem priorizado o oferecimento de disciplinas voltadas para a advocacia litigiosa, em absoluto e completo detrimento de práticas e conteúdos direcionados para as soluções extrajudiciais de litígios.

Nesse sentido, a mudança que se faz necessária no ensino jurídico, para viabilizar a transformação do perfil do advogado do futuro, de um agente do litígio para um agente do consenso, envolve não apenas uma alteração radical na grade curricular das faculdades de direito, de caráter multidisciplinar, com a adoção de cadeiras obrigatórias (teóricas e práticas) na seara das ADRs, mas também o emprego de métodos variados de ensino (e.g., estudo de caso, simulações, role-playing, jogos, dramatizações, competições e adventure learning), com enfoque em experiências reais e casos concretos, viabilizando o desenvolvimento nos estudantes de direito de habilidades que os tornem aptos ao exercício da advocacia colaborativa e negocial, conforme se espera do jurista do século 21.


[1] CONSELHO Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acesso em: 27 dez. 2021.

[2] Ibidem, p. 178 e p. 187.

[3] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Por uma nova cultura de solução de conflitos. Migalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/356142/por-uma-nova-cultura-de-solucao-de-conflitos. Acesso em: 28 dez. 2021.

[4] CONSELHO Nacional de Justiça (CNJ), Op. cit..

[5] Vide, por todos: COELHO, Eleonora. Desenvolvimento da cultura dos métodos adequados de solução de conflitos: uma urgência para o Brasil. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (Coord.). Arbitragem e mediação: a reforma da legislação brasileira. São Paulo: Atlas, 2015, p. 112-114.

[6] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Op. cit..

[7] A respeito do assunto, confira-se, dentre outros: WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 437 e ss.; FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 27-48.

[8] Nesse sentido: LEMES, Selma Ferreira. Os procedimentos arbitrais e as funções dos advogados. Valor Econômico, 2003. Disponível em: http://selmalemes.adv.br/artigos/artigo35.pdf. Acesso em: 01 jan. 2022.

[9] COELHO, Eleonora. Op. cit., p. 111.

[10] O fenômeno tem trilhado, no Brasil, trajetória muito semelhante àquela verificada nos Estados Unidos da América,  em que “lideranças no campo das ADRs… trabalharam pela aprovação de atos legislativos e executivos, exigindo a implementação de programas de ADRs e disponibilizando pessoas e fundos” (CARLSON, Chris; ANDERSON, Heather. Dispute resolution in the public sector: what makes programs survive, thrive, or die? Dispute Resolution Magazine, v. 20, n. 3, p. 11-16, 2014, tradução livre).

[11] Vide: MUNIZ, Petronio R. G. Operação arbiter: a história da Lei nº 9.307/96 sobre a arbitragem comercial no Brasil. Pernambuco: AAEPE, Associação dos Advogados de Empresa de Pernambuco, 2005.

[12] FUZISHIMA, Ancilla Caetano Galera. Fase pré-processual obrigatória de conciliação: condição de acesso à prestação jurisdicional. Tese  (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. Disponível em: http://tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/4730/5/ANCILLA%20C%20GALERA%20FUZISHIMA.pdf. Acesso em: 01 jan. 2022.

[13] Assim, por exemplo: ROQUE, Andre Vasconcelos; DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; MACHADO, Marcelo Pacheco; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte. Acesso à justiça x demandismo: repensando a gratuidade nos juizados especiais. Migalhas, 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/305449/acesso-a-justica-x-demandismo—repensando-a-gratuidade-nos-juizados-especiais. Acesso em: 01 jan. 2022.

[14] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Op. cit.. O problema não é uma exclusividade brasileira. Já na década de 80, o professor Albert Sacks, de Harvard, em análise da mudança curricular lá promovida (com a então recente ampliação do ensino das ADRs), já apontava para as deficiências na educação jurídica, que se preocupava basicamente em preparar os estudantes de Direito para o litígio (SACKS, Albert M. Legal education and the changing role of lawyers in dispute resolution. Journal of Legal Education, v. 34, 1984, p. 239-244).

[15] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. O papel do ensino jurídico na formação de uma nova cultura de solução de litígios no Brasil. In: LEAL, Fernando (org.). Cadernos FGV Direito Rio, Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2022, p. 163-194.

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