‘Ninguém conhece mais a Ilha do que eu’: Nereu Pereira, a ‘memória viva’ de Florianópolis

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Prestes a completar 95 anos, o historiador Nereu do Vale Pereira considera que já escreveu tudo o que devia e reduziu suas atividades corriqueiras, como ler e visitar o EcoMuseu do Ribeirão da Ilha, que administrou por muitos anos, em vista de limitações físicas que vieram com a idade.

Ele foi vereador (1959-1963) e deputado estadual (1963-1967), e ostenta um vasto currículo que inclui a participação como relator na elaboração do primeiro Plano Diretor de Florianópolis, em 1955, e em inúmeros estudos visando ao desenvolvimento econômico da cidade. Passou três décadas consertando eletrodomésticos antes de se tornar professor universitário e exercer outras funções públicas.

Nereu Pereira, de 95 anos, é ‘enciclopédia’ de Florianópolis – Foto: Leo Munhoz/ND

De 1979 para cá, foi 22 vezes aos Açores, e em 2017 fez uma viagem com todos os integrantes da família para as nove ilhas do arquipélago, levando até um bisneto de dois anos. Também presidiu o Avaí, recebeu muitas medalhas e condecorações, é sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e membro de dezenas de instituições históricas e culturais.

Economista, historiador e doutor em sociologia, publicou 26 livros, entre eles “Os engenhos de farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina”, “Origem e raízes do boi-de-mamão catarinense”, “O sentimental e o folclórico pão-por-Deus”, “As festas do Divino Espírito Santo – Origens”, “A arte da baleeira” e “Santa Catarina – A Ilha 500 anos”. Considera “Descortinando as 100 belas praias de Florianópolis” a sua principal obra.

“Tive uma vida de dificuldades, mas fui superando tudo e aos 17 anos já tinha minha autonomia financeira. Durante 30 anos, consertar aparelhos de famílias importantes foi o meu ganha-pão.”

“Com seis ou sete anos já comecei a me preocupar com as coisas da cidade, e desde então evitei citar seu nome, porque ele faz referência a Floriano Peixoto, o homem que fuzilou na ilha de Anhatomirim, em 1894, os líderes catarinenses”, acrescenta.

Acompanhe a entrevista do ND com Nereu Pereira.

O senhor escreveu muitos livros sobre a história de Florianópolis e acompanhou a transformação da cidade, que está fazendo 350 anos. Como e quando começou esse amor pelas coisas da Ilha de Santa Catarina?

Com seis ou sete anos já comecei a me preocupar com as coisas da cidade, e desde então evitei citar seu nome, porque ele faz referência a Floriano Peixoto, o homem que fuzilou na ilha de Anhatomirim, em 1894, os líderes catarinenses que se revoltaram contra o governo da República. Meu livro “Açorianópolis” nasceu em função disso, propondo a troca da denominação da cidade em homenagem aos colonizadores açorianos.

Desde muito jovem fui trabalhador autônomo. Depois professor, vereador e deputado, e também ajudei a levar energia elétrica para localidades que não tinham esse serviço. Há 60 ou 70 anos, as pessoas se abasteciam em bicas d’água e, à noite, a luz ia sumindo pela incapacidade do sistema de cobrir o consumo crescente que decorria do aumento da população.

Sua biografia inclui diferentes atividades, entre elas a de técnico em manutenção de aparelhos elétricos. Como entrou nesse ramo?

Estudei na antiga Escola Industrial e aprendi a fazer baterias para minha casa, justamente porque a cidade era mal servida de energia elétrica. Montei uma oficina para o conserto de rádios, o meio de comunicação mais usado naquele tempo, e também de geladeiras (ainda a querosene) e outros aparelhos elétricos. Fui autodidata em várias funções que executei. Até pandorgas fiz para vender, porque na época não havia a mesada da família e era preciso arranjar o próprio dinheiro. Cheguei a instalar um projetor de cinema (movido à mão) e cobrava ingresso dos vizinhos que queriam ver os filmes.

Nereu Pereira em seu apartamento na Beira-Mar de Florianópolis – Foto: Leo Munhoz/ND

Tive uma vida de dificuldades, mas fui superando tudo e aos 17 anos já tinha minha autonomia financeira. Durante 30 anos, consertar aparelhos de famílias importantes foi o meu ganha-pão. Depois, me tornei técnico em contabilidade, aproveitando, como trabalhador do segmento do comércio, as bolsas de estudo do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) para aprender outros ofícios. Hoje, como professor aposentado, não ganho a metade do que ganhava naqueles anos.

O senhor casou cedo e teve uma prole numerosa. Na época, isso ainda era possível…

Casei aos 20 anos, mas continuei me aperfeiçoando. Minha mulher trabalhava no comércio e abandonou o emprego para cuidar da casa. Como meus pais, tivemos 12 filhos, dos quais nove sobreviveram. Entrei no curso de economia em 1957, outra vez aproveitando uma bolsa do Senac. Na década de 1960, fiz um curso de planejamento e como vereador ajudei a aprovar projetos dos prefeitos Osmar Cunha e Dib Cherem.

Em 1962, fiz um concurso e fui escolhido para a vaga de professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), e ali fiquei até 1992. O salário era bom, tanto que comprei um terreno de 78 mil metros quadrados no Ribeirão da Ilha, onde estão o museu e meu acervo de livros. Cheguei a ter três carros, quando a maioria das famílias tinha no máximo um. Também estudei em São Paulo e em Porto Alegre, onde fiz parte da equipe que implantou o BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo-Sul).

O senhor conheceu o Ribeirão da Ilha num momento bem diferente do atual. O que recorda dos velhos tempos?

O Ribeirão era um fim de mundo, sem energia e estradas, um lugar de pesca e roça. Hoje, ao contrário, é um modelo de organização comunitária. Lá, eu criava galinhas e perus e cheguei a vender 500 aves por mês. O filho mais velho era o motorista que entregava as galinhas numa Kombi em vários pontos da cidade e do Estado.

Sua família tem origens açorianas, daí o seu apego ao estudo do legado dos imigrantes na região. Fale um pouco sobre essas raízes.

Meu pai era do Saco Grande, atual bairro João Paulo. Os avós traziam produtos de carroça do interior da Ilha até o Mercado Público. Meu pentavô paterno, João Cipriano Pereira, bisavô do meu bisavô, chegou aqui em 1748 na primeira leva dos imigrantes que vieram para Santa Catarina. A avó materna morava perto da fortaleza de São José da Ponta Grossa, e minha mãe era filha de uma professora que trabalhou em Porto União e São Bento do Sul. Ela começou a namorar meu pai lá. Depois de casados, eles se mudaram para a Ilha, fixando-se na rua Major Costa, em uma casa de 1921 que foi tombada e existe até hoje.

A principal diversão daquele tempo era frequentar as festas religiosas, como as do Divino Espírito Santo, da Laranja (na Trindade) e de Nossa Senhora do Rosário, no Centro. As festas do Divino e de Reis fazem parte da história, da cultura e da religiosidade dos açorianos e dos catarinenses. Quando fui aos Açores pela primeira vez, em 1979, lá ninguém conhecia Santa Catarina.

Com mais dois irmãos, fiz apresentações de boi de mamão (na época, boi de pano ou boi falso), que a polícia reprimia por considerar um folguedo de “malandros” que não queriam ir para a escola.

Alguns de seus livros buscam as origens da ocupação europeia no Estado, nas primeiras décadas do século 16…

Sim, desde que foi dado o nome de Santa Catarina a esta parte do território, em 1526. O lugar que hoje se chama Tapera era Caiacanga-Mirim e foi visitado pelo navegador Sebastião Caboto. Existe uma polêmica quanto à origem do nome, mas não há comprovação de que ele foi dado em homenagem à mulher de Caboto, Catarina Medrano. Ambos eram aventureiros de origem inglesa a serviço da coroa espanhola.

É da natureza humana querer entender a própria história. Acho que ninguém conhece mais a Ilha de Santa Catarina do que eu. Um dos meus livros fala dos 1.800 nomes de lugares e logradouros da cidade. Até hoje não sei como consegui juntar tanta coisa – na casa do Ribeirão da Ilha tenho 28 gavetas com tudo o que reuni ao longo desses anos.

Historiadores têm levantado a questão da releitura do episódio do Contestado, dizendo que ainda há muito a dizer sobre o conflito e que ele ainda não acabou, pelas sequelas que deixou nos catarinenses. O que pensa sobre isso?

Nereu Pereira e a família – Foto: Arquivo Pessoal

As discussões sobre o Contestado são mero saudosismo. Na minha leitura, não há nada a ser retificado. A questão envolvia uma polêmica de fronteiras com o Paraná, que ficou com uma área que era de Santa Catarina até 1914, quando foi assinado o tratado de limites.

O senhor foi acusado de ter participado do incêndio da livraria Anita Garibaldi, do escritor Salim Miguel, em 1964. O que tem a dizer sobre o episódio?

Acho que foi um equívoco histórico que podia ter sido evitado, mas a livraria era um centro de difusão de ideias marxistas, contra os interesses do Brasil. O comunismo merecia nossa repulsa. Éramos estudantes membros da Juventude Operária Católica e dávamos aulas de catequese.

Foi escrito um manifesto anticomunista, e eu participei para fazer discursos antes do ataque à livraria, onde se reuniam pessoas que defendiam as teorias ditatoriais de esquerda. Comecei o discurso, para criar o ambiente, e um colega nosso, ex-comunista, deu início ao incêndio dos livros. São embates políticos e ideológicos que deixam marcas, mas que não duram a vida toda. No entanto, eu faria tudo de novo.

 

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