Inteligência artificial e a relação com nossa realidade psíquica

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Os pesquisadores que vêm desenvolvendo novas formas de inteligência artificial já estão buscando se apoderar e utilizar de processos semelhantes aos que em tese acontecem na mente humana, em como se dá o processo de pensamento. Uma das teorias vigentes tratam do pensamento fractal. Um exemplo de pesquisador do gênero é Keith McGregor, que investiga inteligência artificial, raciocínio visual, representações fractais e sistemas cognitivos.

Se considerarmos o exemplo acima, uma inteligência artificial assim criada teria a capacidade de equiparar realidade virtual com algo da realidade psíquica; a realidade virtual imitaria parte do funcionamento psíquico.

O médico e psicanalista Paulo Sandler, em seu livro A apreensão da realidade psíquica, afirma que os matemáticos que propõem a existência de uma inteligência artificial não estão interessados em explicar como a mente humana funciona; tentam, na verdade, desenvolver modelos que imitem (funcionem como) a mente humana. Diz ainda que “os defensores da inteligência artificial entendem o ser humano como alguém determinado, com causas que por exemplo se localizam na questão do prazer-dor. Eles não chegaram ao princípio da realidade. O determinismo do princípio prazer/desprazer e do princípio da realidade é um determinismo de funções; o da Inteligência Artificial, um determinismo de causas”[1].

Feitas estas considerações, podemos observar a partir de outros ângulos essas questões. Uma possibilidade é que simplesmente a realidade de nosso psiquismo é se utilizar de elementos que estão à disposição na “natureza” (pensamentos sem pensador), prontos para serem descobertos, pensados e desenvolvidos por outros, e para outros continentes que os possam conter – podemos pensar aqui no modelo continente-conteúdo do psicanalista Wilfred Bion que, influenciado por Melanie Klein, usa esta relação para pensar um modelo entre a mente e seus pensamentos.

Em uma visão conservadora, outra forma de enxergar essa situação seria que as máquinas dotadas de inteligência artificial ao nosso dispor não passariam de máquinas mais aperfeiçoadas.

Como diz Sandler em seu livro, por exemplo, quando questiona até que ponto aparelhos criados e instruídos para se autorregularem podem chegar a sentir realmente dor ou desprazer. Segundo ele, a “inteligência artificial” ainda não ultrapassou os limites das respostas sensoriais reflexas, “inteligências” estas produzidas, que procuram se assemelhar a respostas sensoriais humanas, e não “sê-las” de verdade, quando por exemplo essas máquinas são orientadas a “interpretar” alguma informação como equivalendo a “dor” e outras como “prazer”.

O fato é que o ser humano, mímico de si mesmo, com sua capacidade símia de imitar, já carrega uma espécie de pensamento ou inteligência “artificial”: “pensam como humanos, falam como humanos, mas não chegam a ser humanos”. Nesse sentido, poderíamos julgar grande parte de nossa espécie de forma muito mais parecida a máquinas do que propriamente como humanos, já que para isso precisaríamos usar nossa capacidade de pensar e não a de imitar. Parafraseando um conceito do psicanalista Donald Winnicott, muitas vezes, parece que não passamos de falsos selfs.

O ser humano continuamente desejou que máquinas pudessem ajudá-lo nas atividades e tarefas do dia a dia, otimizando seu tempo. Com o incremento da tecnologia no nosso cotidiano atual, o que presenciamos é algo radicalmente diferente: uma dependência cada vez maior das máquinas, sejam elas quais forem. E, paradoxalmente, uma redução drástica do nosso tempo útil. Temos mais tecnologia a nosso dispor e menos espaço e tempo ainda para usufruir da desejada vida a ser vivida.

Se caso a inteligência artificial fosse usada como constituinte de aprimoramento de relações e vínculos a favor do conhecimento (Vínculo do Conhecer – Knowledge – para Bion), a importância dela aumentaria em número e grau. Já o uso perverso dessa e outras tecnologias só nos levam aos mesmos becos sem saída do humano em que sempre estivemos. Não só a esses becos, mas a buracos sem fundo ou volta. Para Stephen Hawking, o laureado físico britânico, o desenvolvimento da inteligência artificial poderia representar o fim da raça humana.

Em que pé estaria então o princípio da realidade virtual, se pensássemos essa histérica história humana num nível psicanalítico? Um passo à frente? Uma regressão ao infantil? Segundo o psicanalista Erich Fromm:

A história humana começa com a “queda” de Adão. A harmonia original, pré-individualista, entre o homem e a natureza e entre o homem e a mulher, foi substituída pelo conflito e pela luta. O homem sofre com esta perda de unidade. Fica solitário e separado de outros homens e da natureza. Seu anseio mais apaixonado é voltar ao mundo de união, que era seu antes da “desobediência”. Seu desejo é abrir mão da razão, consciência pessoal, escolha, responsabilidade, e voltar ao ventre da Mãe Terra, às trevas onde a luz da consciência e do conhecimento ainda não brilha. Quer escapar de sua liberdade recém-conseguida e perder a consciência mesma que o torna humano.[2]

O que Fromm sinaliza, apoiando-se no Mito do Pecado Original, para as questões que estamos colocando, é decisivo, no ponto que toca nossa capacidade sempre disponível a regredir.

É interessante pensar que uma inteligência artificial realmente inteligente, a ponto de se assemelhar aos homens ou ultrapassá-los naquele ponto que designa o encontro entre o pensamento e a ação (o verdadeiro pensar como prelúdio à ação – aquilo que leva a ação – que é tido como verdadeiro pensamento – o “Eureka!”), seria uma máquina suficientemente arguta e sensata para chegar à conclusão de que ela mesma abrigaria a potência de se perceber como possível responsável por nos aniquilar. Uma máquina ou tecnologia assim seria capaz de compreender que o melhor meio de evitar isso seria destruir a ela mesma e não os seres humanos. A não ser que ela notasse o quanto somos prejudiciais a um sistema maior que é a natureza como um todo. Ou até em outro plano, nocivos ao universo.

Além do princípio de prazer, ou do princípio de realidade, estaria o de realidade virtual, onde tudo seria possível, inclusive nossa autodestruição. Como diz uma fala de um personagem, presente em um filme de um cineasta de renome internacional (cineasta cuja reputação está sob sérias dúvidas, e que, por isso, parece melhor cineasta que ser humano), “a ciência é um beco sem saída”[3].

Em um próximo texto, falarei sobre a velocidade de propagação da IA e os perigos que a crescente inovação na área (sem a regulação e responsabilização necessária das plataformas e tecnologias) pode trazer.


[1] SANDLER, P.C. A Apreensão da realidade psíquica. Vol I. Imago, 1997.

[2] FROMM, Erich. O espírito de liberdade. Zahar, 1967.

[3] Filme “O dorminhoco” (1973) inspirado no livro de H. G. Wells, de nome homônimo.

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