Judicialização da saúde e a distinção entre o controle e a intervenção

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Pelo menos desde 2010 o Judiciário vem tentando racionalizar sua atuação nos processos que tratam do direito à saúde. É desse ano a criação do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus). É de 2010 também uma decisão de referência do Supremo Tribunal Federal, a conhecida STA 175, que tratou do tema do dever do Estado de prestar saúde e buscou estabelecer parâmetros para a solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde.

Criou-se, também, mais adiante, uma rede de Comitês Estaduais (e distrital), bem como os Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NATJUS), com o objetivo de fornecer elementos de racionalidade à decisão judicial, já que tais decisões têm forte apelo emocional e se dão em um contexto de enorme peso psicológico. Além de fazer referência à necessidade de que decisões sobre saúde sejam baseadas em evidências científicas, a chamada “medicina por evidências”, a portaria que cria os comitês determina, como sua atribuição, “a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário”.

Os dados do Judiciário mostram que temos mais de uma década de tentativa de diminuir o número de ajuizamento de ações sobre saúde e de buscar critérios sólidos e suporte técnico para esse tipo de decisão judicial.

Ocorre que, mais de 12 aos após esse movimento, o número de processos judiciais sobre direito à saúde seguem consistentemente crescentes, como também o são os gastos públicos com esse tipo de prestação estatal, decorrentes de decisões judiciais.

Todas as iniciativas do Judiciário para lidar com o ajuizamento massivo das questões de saúde podem ser compreendidas como uma “política” para resolver o problema. Poder-se-ia chamá-la de uma “política judiciária”, com alguma licença para a analogia com o conceito de “política pública”. No que concerne ao objetivo de reduzir o volume de ações ajuizadas, a política falhou.

A judicialização continua, mais intensa do que nunca. É preciso, portanto, avaliar se algo deve ser mudado ou se é possível aperfeiçoar o modo de tratar o problema. Pretendo aqui apenas sugerir uma dessas possibilidades, tratando de indentificar as duas tipologias básicas de ações e lançar alguma atenção sobre a necessidade de que sejam tratadas, do ponto de vista da política judiciária, de forma distinta.

A expressão “judicialização da saúde” é, em algum sentido, enganosa e atrapalha a compreensão e o tratamento do fenômeno que se quer descrever. O fato de haver muitos processos sobre o direito à saúde não significa que eles sejam do mesmo tipo e nem que tenham de ser tratados da mesma forma.

Uma primeira questão terminológica é que não se utiliza, por exemplo, a expressão “judicialização” para expressar o grande volume de ações sobre outros assuntos ou com outros objetos. Não se fala com a mesma ênfase de judicialização dos contratos de crédito ou sobre educação, embora haja igual número, ou até maior , desse tipo de ações em trâmite na justiça. Talvez, portanto, a “judicialização” não se refira ao grande número de ações, mas a um campo em que se discute um problema sensível ao Judiciário.

A segunda questão é que não existe um único tipo de processo judicial sobre direito à saúde. No que concerne aos impactos das decisões judiciais na administração pública e à possibilidade de alteração de sentido da política de saúde como resultante dessas decisões, a mais expressiva diferença entre tipos de processos é relativa a pedidos de medicamentos ditos “padronizados” e os “não padronizados”.

Sobre essa diferença, uma explicação simples, no caso de pedidos de medicamentos, é a seguinte: no primeiro caso, há previsão legal de fornecimento de um medicamento, a falha na entrega é um caso padrão de descumprimento de dever legal existente, e a atuação do Poder Judiciário é no sentido de determinar que o Estado cumpra a obrigação já determinada na lei.

No segundo caso, em que não há previsão específica de que determinado medicamento deva ser fornecido, os chamados “não padronizados”, a decisão não é fundamentada em uma regra específica que determina o dever do Estado, mas fundamenta-se na retórica dos princípios e das normas constitucionais gerais, como é o caso do art. 196. Há, aqui, verdadeira intervenção judicial na política pública que, por definição, é regrada por meio de leis e normas infralegais que estabelecem os limites e a extensão do direito dos cidadãos ao serviço de saúde.

A intervenção cria regras e obrigações que não existiam de forma específica, mas resultam da interpretação de alguma norma que enuncia um direito em abstrato. Por exemplo: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido de forma universal e igualitária. Com base nessa norma se entende que mesmo medicamentos não previstos nas políticas de saúde são devidos.

Como a judicialização da saúde pode ter se tornado um campo com relativa autonomia, no qual a luta pelo poder de nomeação se tornou mais importante do que a solução do próprio problema, é preciso refletir se a forma como estamos tratando o problema é a mais adequada. Aparentemente não é.

É preciso estabelecer o foco sobre o tipo de problema sobre o qual se pretende tratar. Tem-se nominado por “judicialização da saúde” tudo o que diz respeito ao dever do Estado nesse tema. A perspectiva sobre como abordar o fenômeno do ajuizamento massivo de ações de saúde e suas consequências estabelece, por vezes em oposição, grupos que se encontram em posições específicas, como os magistrados de tribunais superiores e os de primeiro e segundo graus, na medida em que as decisões daqueles estabelecem critérios racionais universalizáveis, enquanto o padrão decisório destes é fortemente concessivo de prestações não previstas, o que dificulta sua universalização.

Há também, de um lado, grupos de profissionais, professores e pesquisadores que entendem que o resultado da judicialização é preponderantemente negativo para a efetividade do direito à saúde, por motivos que vão da ilegitimidade do magistrado para alterar a política de saúde à incapacidade de lidar com a racionalidade coletiva de uma política pública. De outro lado, grupos que a entendem como uma necessidade, sendo o Judiciário um espaço privilegiado de luta pelo direito, luta essa justificada pelas supostas má-administração, omissão prestacional e corrupção.

É preciso separar as coisas. Falar de judicialização da saúde como se os dois tipos de problemas fossem da mesma natureza e com as mesmas consequências não permite abordá-los da melhor maneira.

No caso dos processos em que se pede o que já é especificamente previsto nas regras, o sistema de Justiça apenas controla a sua observância e atua determinando que uma norma existente produza seus efeitos; ou seja, o controle é de eficácia da regra.

No caso dos processos em que se pede medicamentos e tratamentos que não estão previstos, o que ocorre é uma intervenção judicial, com criação de regra. Ou seja, não se trata de buscar eficácia de uma regra existente, mas de criação de hipóteses normativas que vão acrescentando sentido às normas constitucionais gerais sobre a saúde. Trata-se de criar e validar hipóteses regradas não existentes ao tempo da formulação das políticas públicas de saúde. Nesse caso, ao incluir regras novas na política pública, o julgador atua como um protolegislador, alterando o sentido do conjunto das normas sobre o tema. Produz-se, assim, uma alteração sistêmica de sentido do campo normativo e o problema se situa no plano da existência das normas.

Muitas são as consequências da alteração desse sentido, mas há algumas especialmente relevantes, dado seu impacto na lógica geral de uma política pública que objetiva prestações positivas de serviços estatais com custos individualizáveis, e que se dão no contexto de limitação de recursos orçamentários. Por todos, dois exemplos são elucidativos: a desconsideração da chamada regra de custo x efetividade e a desconsideração das regras técnicas de regulação médica de acesso a serviços de saúde, tais como vagas de UTI.

A intervenção judicial na política pública de saúde, ao criar e validar obrigações ex post facto, em relação à formulação das políticas públicas, cria custos não previstos para a administração. Além disso, gera incentivos à busca judicial por todo e qualquer tipo de direito não previsto nas normas, já que o sujeito que se resigna com os limites estabelecidos nas leis sobre o acesso à saúde leva brutal desvantagem em relação ao que aciona o Estado.

Importante notar que com a atuação da Defensoria Pública, o custo de propor uma ação é desprezível, além de ser inexistente o risco dos ônus sucumbenciais para os beneficiários da gratuidade de justiça. Resulta, ainda, na desigualdade de fruição dos serviços prestados pelo Estado, já que o acesso ao Judiciário não é igualitário, por variados motivos, nos municípios e estados brasileiros. Entre os mais pobres ocorre a perversa desigualdade intraclasse.

Um dos exemplos mais evidentes da desigualdade intraclasse resultante da intervenção judicial nas políticas de saúde é a desconsideração da regulação de acesso. São os casos de determinação de internação em leitos de UTI em que várias pessoas precisam de uma vaga, havendo menos vagas do que necessitados. As decisões que determinam a internação em UTI desconsideram os critérios médicos para a utilização dos recursos, critérios que têm sentido na dinâmica temporal própria da medicina.

Dito de outra forma, são os médicos que podem dizer, no grupo de pessoas que necessitam de um leito de UTI de forma imediata, quais estão em condições adequadas de utilizar esse recurso, já que a melhora ou piora desses indivíduos pode ocorrer em minutos e horas. Uma decisão judicial é dada como se esse contexto pudesse ser congelado, por assim dizer, e houvesse uma verdadeira fila, com direito à precedência dos que chegaram antes. Não é assim que a regulação médica funciona. Logo, a decisão acaba resultando em disfuncionalidade da saúde.

A intervenção nas políticas de saúde resulta em consequências econômicas, administrativas e simbólicas para a comunidade política. A “judicialização” problemática é essa. Se faz sentido atribuir ao recurso massivo ao Judiciário alguma expressão designadora, é sobre esse tipo de ação que devemos circunscrever nossa atenção. Aqui há uma jaboticaba, um fenômeno especificamente brasileiro, que deve merecer atenção de quem pratica o direito e reflete sobre ele. Saber se a intervenção é eficiente ou não, boa ou má, se é adequada ou não, justa ou injusta, demanda o estabelecimento de premissas que não são as mesmas daquelas aplicáveis ao controle judicial da saúde.

Quanto ao controle sobre a eficácia das regras de direito à saúde, não há (e nem deve haver mesmo) nenhuma discussão sobre a legitimidade da atuação judicial nesse tipo de ação, nem sobre suas consequências administrativas ou financeiras para o Executivo. No caso da negativa contumaz de prestação de saúde pelo agente político, não parece caber qualquer questionamento sobre impacto financeiro de decisões.

Jogar na vala comum os dois tipos de judicialização pode enfraquecer o foco do problema do desrespeito às obrigações estatais já definidas em normas próprias. Quanto a essas, a gravidade de se negar, por exemplo, consultas, hemodiálise, tratamento oncológico e cirurgias, poderia, no limite, abrir a discussão sobre a ausência de probidade administrativa dos responsáveis, com as consequentes responsabilizações cabíveis.

Tratar os dois tipos de ações como se o problema fosse o mesmo, pode estar dificultando a capacidade de encaminhar soluções para cada qual.

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