A regulamentação das apostas esportivas

A formação histórica-social do Brasil revela um cenário fortemente marcado por lutas, conquistas e avanços, seja no âmbito social ou na concepção do próprio Estado como instituição democrática, mas, especialmente, por um característico traço cultural de aversão às normas de convívio social. 

Muito embora não seja elemento exclusivo, pois se repete em outros países, o Brasil, desde sua colonização, engendrou uma pessoalização das relações, sobrepujando o âmbito público (aqui concebido como as leis e regras objetivas) em detrimento de regras particulares de convivência. 

Esse cenário acaba servindo de alicerce para o “homem cordial” tratado em Raízes do Brasil[1], por muitos equivocadamente interpretado[2], já que se distancia da versão “poética” do homem. 

Afinal, a palavra cordial é uma derivação do latim cordis, que se traduz como “coração”. Neste contexto, o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda é aquele que age motivado pelas emoções, movido por um forte sentimentalismo, que lhe permite criar, se necessário, subterfúgios às regras de convívio para prevalência de seus interesses particulares. 

Um cenário fértil para faceta negativa do famoso “jeitinho brasileiro”. 

A respeito disso, em artigo intitulado “Ética e jeitinho brasileiro”, Luís Roberto Barroso expõe, com clareza, como isso abre margens para desvios de condutas que, posteriormente, se transformam em infringência direta da lei, inclusive mediante corrupção: 

“[…] A face negativa do jeitinho é bem conhecida de todos nós. Ela envolve a pessoalização das relações, para o fim de criar regras particulares para si, flexibilizando ou quebrando normas que deveriam se aplicar a todos. […]
[…] O sentimento pessoal acima do dever se manifesta no favorecimento dos parentes e dos amigos, no compadrio, na troca de favores, ‘o toma lá dá cá’. […]
Essa facilidade para quebrar regras sociais, em um passo, se transforma em violação direta e aberta da lei. E aí vêm as pequenas fraudes, como o atestado médico falso, a consulta com recibo ou sem recibo e a nota superfaturada para aumentar o reembolso. Depois, sem surpresa, vem a corrupção graúda, de quem paga propina para vencer a licitação, obtém inside information para investir no mercado financeiro ou paga ao diretor do fundo de pensão estatal para colocar o dinheiro dos associados em um negócio pouco vantajoso. […]” (g.n.) 
 

A corrupção, como se denota, não está restrita aos “crimes de colarinho branco”, mas se revela em todos os setores sociais. Diante deste contexto, surgem diversos institutos legais com o escopo de mitigar práticas de corrupção, dentre os quais tem-se, principalmente, a implementação das Políticas de Integridade (compliance). 

Porém, dada a evolução social, avanço da tecnologia, e, sobretudo, maior circulação de riquezas, mostra-se cada vez mais cogente o combate à corrupção em suas variadas formas, inclusive (dado o cenário recente), no meio esportivo, haja vista o suntuoso crescimento das apostas esportivas virtuais no país. 

As apostas esportivas virtuais no Brasil

O debate sobre a regulamentação das apostas esportivas virtuais (ou por quota fixa) não é de hoje. A própria Lei 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que autorizou a prática no Brasil, já previa que a regulamentação da modalidade ocorresse até 2022 (artigo 29, §3º).  

Entretanto, ainda sem a regulamentação prevista, logo no primeiro semestre de 2023 o Brasil se vê diante de escândalo de apostas esportivas fraudulentas envolvendo as duas principais divisões do campeonato de futebol nacional disputado em 2022 e de jogos disputados nos Campeonatos Estaduais de 2023 (as quais, a priori, teriam sido manipuladas por organização criminosa).  

A Operação Penalidade Máxima II, que menciona diversos atletas de clubes tradicionais brasileiros (Santos, Fluminense e Grêmio, por exemplo), ganhou publicidade após a denúncia feita pelo Ministério Público de Goiás ter sido recebida pela Justiça Estadual goiana e, ao que parece, está apenas começando.  

Atualmente, a operação é preocupação federal e, possivelmente, mais crimes serão localizados, pois o ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou que a Polícia Federal abrisse inquérito policial, a fim de que fossem localizados outros crimes de manipulação de resultados e apostas esportivas, em atendimento, inclusive, a pedido do próprio presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues. 

Dos crimes envolvidos na manipulação do resultado de competições esportivas

São diversos os crimes envolvidos nessa prática ilegal, podendo responsabilizar criminalmente não apenas os integrantes da organização incumbida de aliciar jogadores e proceder com as apostadas, mas também os próprios jogadores. 

Inicialmente, e considerando a denúncia oferecida pelo Ministério Público de Goiás, os integrantes do esquema podem responder por formação de organização criminosa, previsto no artigo 2°[3] da Lei 12.850/2013, já que, segundo investigações e dados divulgados, havia uma verdadeira estrutura criminosa, com clara divisão de tarefas e modus operandi definido. 

Por outro lado, a corrupção praticada em âmbito esportivo possui incriminação no bojo do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003). 

O artigo 41-C[4] do estatuto traz a figura da corrupção passiva esportiva, que pode ser cometido por dirigentes, atletas e árbitros, por exemplo. Sua configuração exige o ato de “solicitar” ou “aceitar” vantagem/promessa (patrimonial ou não) para a prática de ato comissivo ou omissivo destinado à manipulação do resultado da competição. 

Neste caso, percebe-se não ser necessário que a manipulação do resultado se concretize, pois, sua consumação ocorre com o simples ato de solicitar/aceitar a vantagem ou sua promessa.  

Porém, é necessário que, quem solicite ou aceite, tenha, de fato, poderes para influir no resultado da competição. Do contrário, haverá caraterização de outro delito, que não a corrupção passiva esportiva. 

Há também o artigo 41-D[5] do estatuto, que traz a figura da corrupção ativa esportiva, podendo ser cometido por qualquer pessoa. Nesta hipótese, faz-se necessário o ato de “dar” ou “prometer” vantagem (patrimonial ou não), com o intuito de modificar o resultado de uma competição esportiva.  

Interessante destacar que, neste caso, a caracterização da corrupção ativa independe de prévia aceitação da outra parte (dirigente, jogador ou árbitro) da vantagem dada ou prometida ou, até mesmo, de efetiva alteração do resultado da competição. Basta, portanto, a entrega espontânea ou a simples promessa. 

Da (necessária) regulamentação das apostas esportivas

Entendendo a flagrante lacuna regulamentar, o governo federal está em vias de encaminhar Medida Provisória ao Congresso Nacional prevendo, inclusive, a proibição da atuação de casas de apostas não habilitadas pela autoridade nacional brasileira – o que, por si só, já alteraria bastante o mercado atual da modalidade, que é dominado por empresas com sede no exterior.  

Porém, a estratégia do governo federal vai além de estancar a sangria de apostas esportivas manipuladas, a intenção também é arrecadar ainda mais com tal mercado, inclusive, mantendo a destinação percentual da arrecadação para a educação, segurança pública e seguridade social, como já estava previsto na Lei 13.756/18.  

Em abril deste ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se pronunciou publicamente sobre como o mercado das apostas esportivas virtuais tem movimentado altas cifras e que a tributação adequada seria imprescindível nesse momento, afirmando, inclusive, que a arrecadação está projetada em cerca de R$ 12 bilhões.  

A proposta de Medida Provisória prevê que as empresas serão taxadas em 16% sobre a Gross Gaming Revenue[6], similar ao que ocorre no Reino Unido, mas diante da periculosidade e capilaridade dos esquemas fraudulentos apurados na Operação Penalidade Máxima II, é inegável que a tendência regulatória visa, essencialmente, prever apostas enviesadas e afastar criminosos.  

Da importância do Programa de Integridade Desportivo diante da corrupção no âmbito das competições

É neste momento que as instituições de monitoramento de apostas e os Programas de Integridade Desportivos – que devem, inclusive, ser cada vez mais popularizados, após o boom das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) – se tornarão elementares no combate à corrupção esportiva. 

Um claro exemplo disso é o “Relatório de Integridade: 1º Trimestre de 2023”, disponibilizado pela International Betting Integrity Association (IBIA), que já percebia movimentações suspeitas no Brasil em apostas esportivas, predominantemente na modalidade de futebol. 

Suspeitas de fraudes em apostas esportivas na América Latina, especialmente no Brasil, entre 2018 e 2022 

Os dados fornecidos pelo referido relatório eram o prenúncio de um cenário que, muito embora desprovido de ineditismo, mais uma vez revelou a faceta nefasta da corrupção no país. 

Por consequência dos escândalos recentes, alguns clubes já afastaram atletas (cujos nomes foram apenas ventilados durante a operação) e as casas de apostas se movimentam cada vez mais para que a regulamentação ocorra o quanto antes, demonstrando preocupação e interesse em não sujarem sua reputação com escândalos de corrupção, o que é tipicamente uma ação de compliance (preventiva e em defesa da reputação).  

Portanto, seja você uma casa de apostas, clube associativo ou SAF, é salutar investir em integridade e buscar assessoria especializada na busca de se preparar para a regulamentação das apostas esportivas virtuais, pois o preço da corrupção desportiva poderá ser irreparável. 

[1] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

[2] Cordial é uma derivação de Cordis, do latim, que se traduz como “coração”. Neste contexto, o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda é aquele que age motivado pelas emoções, movido por um forte sentimentalismo, que lhe permite criar, se necessário, subterfúgios às regras de convívio para prevalência de seus interesses particulares. 

[3] Artigo 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. 

[4] Artigo 41-C. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado: Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa. 

[5] Artigo 41-D. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva ou evento a ela associado: Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa. 

[6] Trata-se de receita obtida com todos os jogos feitos, subtraídos os prêmios pagos aos jogadores. 

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