Como os EUA inundaram seu Natal (e o ano inteiro) de pistache


Se você percebeu a febre do pistache no Brasil em 2024, ela não é por acaso. A Califórnia tem batido recordes de produção e feito um esforço de marketing e pesquisa para ampliar o mercado de exportação, inclusive para o Brasil. Vitrine em um supermercado de Jaraguá do Sul (SC) em dezembro: tudo de pistache
Edivaldo Sanches/Cortesia via BBC
O pistache é citado logo nas primeiras páginas do Velho Testamento como um “dos melhores produtos da terra” de Jacó, o patriarca bíblico posteriormente designado como Israel.
Mas quem olha as vitrines cada vez mais verdes de docerias, sorveterias e padarias pelas cidades brasileiras em 2024 pode até imaginar que se trata de uma novidade.
O Brasil, que não produz uma única semente, nunca consumiu tanto pistache.
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Até novembro deste ano, as importações do produto já eram 80% maiores em relação a 2023 — um ano que, por sua vez, já havia visto um crescimento de 70% na comparação com 2022, segundo as estatísticas de comércio exterior do governo federal.
Das mais de mil toneladas de pistache importado em 2024, 85% veio de um único país: os Estados Unidos, que têm batido recorde na produção ano após ano.
Até 2021, os americanos disputavam quilo a quilo com Irã a liderança nas exportações ao Brasil.
Esses recordes de consumo no Brasil e de produção nos EUA não estão desconectados, segundo especialistas com quem a BBC News Brasil conversou.
Nativa do Oriente Médio, onde há milênios faz parte da cultura alimentícia, a árvore do pistache caiu na graça do agronegócio da Califórnia nos últimos anos por ser uma planta que sobrevive bem a um clima cada vez mais quente e a um cenário de escassez hídrica, explica David Maganã, analista da indústria de nozes e castanhas do Rabobank, um banco multinacional que financia o setor de agronegócio.
“Tem havido uma crescente disponibilidade de pistaches, e a indústria tem feito um esforço extraordinário para diversificar os seus mercados de exportação”, diz Maganã, que produz relatórios sobre a produção da Califórnia.
A árvore de pistache demora até 10 anos para atingir sua fase de produção completa — e a partir daí, se cuidada, pode durar até 100 anos.
Isso quer dizer que, com as plantações que tomaram conta especialmente do Vale de San Joaquín, na Califórnia, o mercado americano começou a ser — e continuará sendo —inundado por pistache.
“Já há muitas árvores produzindo e mais árvores estarão produzindo nos próximos anos”, diz Maganã. Ou seja, essa febre tem tudo para não ser temporária.
No Brasil, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), por meio de seu escritório de comércio agrícola em São Paulo, vem desenvolvendo desde 2020 uma série de atividades promocionais para aumentar a visibilidade do pistache.
Em um relatório de 2024 em que aponta o mercado brasileiro “como um terreno fértil para os exportadores”, o USDA destaca a participação em feiras internacionais de alimentos, projetos com chefs influentes no Brasil, parcerias com restaurantes renomados em São Paulo e a promoção do pistache em aulas de culinária com mais de 40 influencers do ramo de gastronomia.
É uma campanha de marketing poderosa e que já tem sido notada há alguns anos por José Eduardo Camargo, presidente da Associação Brasileira de Nozes, Castanhas e Frutas Secas (ABNC).
“Não sei dizer o quanto desse boom do pistache vem do marketing e o quanto é um movimento natural por ser saboroso e de qualidade”, diz Camargo.
“Mas diria que teve sim um impulso do capital americano para quebrar uma ‘inércia’ e ganhar o mercado. Depois, se você tem um produto bom, ele vai ganhando força naturalmente”, completa o presidente da ABNC.
Mas como os EUA se tornaram esse “paraíso” para a produção do pistache?
Receitas com pistaches são muito comuns em países como Turquia, Síria, Irã e Itália
Getty Images via BBC
O ‘ouro verde’ do Oriente Médio
Evidências arqueológicas sugerem que os pistaches foram cultivados pela primeira vez na região que hoje é o Iraque, por volta de 7.000 a.C. Mas foi no Irã que a indústria floresceu — e o cultivo remonta a milhares de anos.
Nos EUA, ela começou apenas na década de 1930, com sementes persas.
O primeiro boom no cultivo comercial de pistache nos EUA ocorreu após o rompimento das relações com o Irã, na sequência da, quando os EUA e seus aliados impuseram sanções ao país.
Nas décadas seguintes, mesmo em países onde os pistaches iranianos eram bem-vindos, as restrições à capacidade das empresas iranianas de acessar financiamento internacional dificultaram o florescimento da indústria.
Mas o boom americano mesmo para a febre global que vemos agora se deu especialmente a partir de 2012 — e os EUA assumiram de vez a liderança mundial de produção em 2016, de acordo com estatísticas do USDA.
Hoje, os americanos representam mais de 60% da produção global e estão bem à frente do antigo líder, o Irã, e da Turquia.
Segundo o relatório produzido pelo Rabobank, pistache é a nova “queridinha” no mercado de nozes e castanhas dos EUA, sendo de longe o produto que mais cresce, por ser muito mais rentável do que as tradicionais amêndoas e as nozes-pecã.
“A rentabilidade e a resiliência dos pomares a secas e salinidade do solo californiano são considerados os fatores relevantes para a recente expansão”, diz o documento.
“As árvores de pistache gostam de verões muito longos, quentes e secos — o que combinou com o clima ‘mediterrâneo’ na Califórnia”, completa David Maganã, analista do Rabobank.
As plantas também dependem do vento, em vez de abelhas, para a polinização e podem produzir nozes por décadas a mais.
Hoje, os pistaches são a sexta maior commodity agrícola da Califórnia em valor, superando culturas tradicionais como morangos e tomates.
O maior mercado consumidor de pistache dos EUA é a China, onde há tradição de consumir e presentear a noz no Ano Novo Lunar.
Mas, diante da disponibilidade crescente, os produtores sabem que precisam diversificar mercados dentro e fora nos EUA.
“A América Latina é um desses mercados em expansão e agora eles têm exportado mais para o México, mais para o Brasil e para outros países”, diz David Maganã.
Com o aumento substancial da oferta nos EUA, há esforços da indústria para criar demanda, como inovações em marketing e pesquisas sobre os benefícios do pistache à saúde.
Com base em estudos, a indústria tem promovido o pistache como uma proteína completa e que tem um maior teor de antioxidantes do que outros produtos.
“Costumamos dizer que os pistaches atendem muitos requisitos nesta poderosa combinação de saúde, conveniência, sabor e versatilidade”, completa o analista.
Do sorvete às padarias de bairro
Pelo menos diante da curva ascendente do pistache, parece que, além de qualquer esforço de marketing ou da indústria, o sabor tem mesmo conquistado paladares.
Na rede de sorveterias Bacio di Latte, uma das maiores do Brasil, o sabor pistache tem sido o mais vendido desde a abertura da primeira loja, em 2011, por sócios italianos em São Paulo. Hoje, é o preferido em todas as 200 lojas.
“Só que nos últimos três anos a gente sentiu aí o nosso volume de pistache praticamente quadruplicar”, diz Fábio Medeiros, diretor de marketing da empresa que hoje tem cerca de 30 produtos baseados em pistache, de picolés a velas.
Com uma estratégia de marketing voltada ao pistache, Medeiros percebeu que, em relação ao ano passado, o Natal de 2024 passou a ser muito mais “verde”.
Nas redes sociais, se espalham vídeos de panetone de pistache, chocolates recheados, bolos.
“Praticamente todas as marcas vieram este ano com uma opção de pistache. É um ingrediente bem versátil, muito palatável e não é ultradoce. Então, as pessoas a geralmente gostam muito dele”, diz Medeiros.
José Eduardo Camargo, presidente da ABNC, gosta de comparar o mundo das castanhas e nozes aos vinhos. “Você começa por um mais simples, mas aí acaba querendo provar outros tipos de uvas e vai gostando mais e mais”.
Essa é a razão que o líder de produtores dá para o avanço do pistache em um momento de avanço também de frutos similares.
“O brasileiro não lembra mais desses produtos apenas no Natal. Eles estão entrando na dieta porque são saborosos, nutritivos e práticos”, diz o representante dos produtores brasileiros de castanha de caju, de baru, macadâmia, noz-pecã e castanha-do-Pará.
Camargo não vê o pistache substituindo os frutos produzidos no Brasil — mas sente que o país poderia seguir os passos dos EUA e investir nas castanhas daqui.
“O Brasil tem o privilégio de ter um tipo de castanha adaptada a cada bioma. Imagina se a gente tivesse uma musculatura para uma grande campanha de propaganda”, reflete.
Há um projeto em estudo para a implantação da primeira criação de pistache brasileira no Ceará.
Nos EUA, a previsão do Rabobank é de que em 2028 a produção chegue ao ponto máximo de árvores produzindo pistache, quando deve se estabilizar.
Há uma lei na Califórnia sobre o uso de água subterrânea que deve limitar novos plantios.
Nos próximos anos, os produtores de pistache, segundo análises do mercado, querem seguir um destino diferente aos de amêndoas, que viram preços despencar com o aumento da produtividade. Por isso, há um esforço para manter a demanda à frente da oferta.
Ou seja, nos anos pela frente, provavelmente haverá ainda muitos doces natalinos e o ano inteiro à base de pistache.
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