Reflexos da Lei Geral do Esporte nas áreas de integridade e direito econômico

Foi publicada no último dia 15 de junho a Lei 14.597/2023, que instituiu a Lei Geral do Esporte (LGE). O texto aprovado pelo Congresso Nacional continha 218 artigos e propunha profunda modificação de paradigma para a normatização das atividades esportivas no Brasil, reunindo em uma única norma questões trabalhistas, tributárias, fundos e incentivos ao esporte, tipificação de crimes, relações de consumo, combate à discriminação, entre outros.  

Durante o processo de sanção presidencial, contudo, a lei sofreu número expressivo de vetos (134), incluindo capítulos inteiros sobre fundos de esporte e tributação das atividades esportivas. O veto presidencial também manteve em vigor a Lei 9.615/1998 (Lei Pelé), antes revogada, “para que não haja lacuna jurídica no arcabouço normativo do direito ao esporte”[1], dando espaço para a vigência simultânea do que se poderia considerar duas leis gerais do esporte.  

Mesmo diante do volume de vetos, a LGE contém discussões e dispositivos relevantes. No presente texto, buscaremos analisar aqueles relacionados, direta ou indiretamente, às áreas de integridade, compliance, direito econômico e regulatório.  

Integridade no esporte e combate à manipulação de resultados esportivos

A Lei Geral do Esporte aborda a importância da integridade no esporte e o combate à manipulação de resultados esportivos. Nesse sentido, a lei prevê três “crimes contra a incerteza do resultado esportivo” (artigos 198 a 200), associados a condutas praticadas com objetivo de “alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”.  

Apesar da nova nomenclatura, a LGE não inova na tipificação, uma vez que a previsão estava presente, com a mesma redação, nos artigos 41-C a 41-E da (agora revogada) Lei 10.671/2003, o Estatuto do Torcedor.

Crime de corrupção privada no esporte

No capítulo destinado aos crimes contra a ordem econômica esportiva, foi instituído o crime de corrupção privada no esporte (artigo 165). Esse crime ocorre quando o representante de organização esportiva privada “exigir, solicitar, aceitar ou receber” vantagem indevida ou aceitar promessa de vantagem indevida para “realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições”. A pena será de reclusão de dois a quatro anos e multa.  

Embora a pena máxima seja menor do que aquela prevista para os crimes contra a incerteza do resultado esportivo, o artigo 165 da LGE consiste em tipo mais abrangente, que engloba todas as formas de corrupção privada, e não apenas a manipulação de resultados, desde que relacionadas ao esporte.  

Ao contrário do que ocorre em outras jurisdições, a corrupção privada no Brasil não era tipificada como crime, de modo que a criação de uma figura clara de corrupção privada, especificamente no âmbito esportivo, é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Apesar disso, a depender do fato, a conduta era punida por dispositivos penais diversos, tais como os crimes de estelionato e violação de segredo profissional, bem como ligada a outras condutas como associação criminosa, lavagem de dinheiro e/ou fraude.  

Destaca-se, ainda, que diversos projetos de lei para criar o tipo penal de corrupção privada já tramitaram (e ainda tramitam) no Congresso Nacional. O mais recente que se tem notícia é o PL 576/2023, de autoria do deputado Kim Kataguiri (União-SP), que elenca os crimes de corrupção privada passiva e ativa e prevê pena de detenção de um a quatro anos.

Demais crimes

Além dos crimes de corrupção privada e manipulação de resultados esportivos, a LGE tipifica outras condutas, buscando proteger a: 1) relação de consumo em eventos esportivos (artigos 166 e 167); 2) propriedade intelectual das organizações esportivas, incluindo a punição por marketing de emboscada e utilização indevida de símbolos oficiais (artigos 168 a 172); e 3) paz no esporte (artigo 201).  

Vedação ao controle de duas organizações esportivas disputantes da mesma competição

De maneira similar ao artigo 27-A da Lei Pelé, o artigo 62 da LGE dispõe que nenhuma pessoa natural ou jurídica detentora de parcela do capital com direito a voto ou que participe da administração de organização esportiva poderá ter participação simultânea no capital social ou na gestão de outra organização esportiva congênere disputante da mesma competição profissional.  

Inicialmente, destaca-se que a LGE não define o termo “organização esportiva”. Apesar disso, qualifica as organizações esportivas em “empregadoras”, “competidoras”, “mandantes”, “responsáveis pela organização da competição”, “direcionada à prática esportiva profissional” e aquelas “que administram e regulam a prática do esporte”. Assim, ao que tudo indica, o termo engloba desde clubes e academias até federações, confederações e ligas, inclusive responsáveis pela administração do esporte.  

A principal diferença entre a nova LGE e a Lei Pelé, neste ponto, consiste na substituição do termo “entidade de prática desportiva” por “organizações esportivas”. Aparentemente, a mudança tornou a vedação mais abrangente, englobando tanto as “entidades de prática desportiva” como as “entidades de administração do desporto”.  

Assim, enquanto a Lei Pelé vedava o controle, pela mesma pessoa natural ou jurídica, de entidades de prática esportiva, a LGE amplia o impedimento para qualquer organização privada cuja atividade principal esteja relacionada ao esporte, inclusive as responsáveis pela administração e regulação esportiva.  

Direito de transmissão de imagem

Mantendo a previsão da Lei Pelé (redação dada pela Lei 14.205/2021), a LGE garante à entidade de prática desportiva de futebol mandante o direito de arena, que consiste no direito de exploração e comercialização de difusão de imagens (artigo 160). Essa previsão busca impedir o fenômeno do “apagão”, que ocorria quando os clubes, que antes exerciam conjuntamente o direito de arena, não chegavam a um acordo e, consequentemente, a partida não era transmitida.  

A novidade é que a lei estabelece que o detentor dos direitos de difusão de imagens de eventos esportivos é obrigado a disponibilizar, no prazo máximo de duas horas após o término do evento esportivo, imagens de parcela dos eventos aos veículos de comunicação interessados em sua retransmissão, para fins exclusivamente jornalísticos e informativos (artigo 163). Fica proibida a associação de parcela de imagens a qualquer forma de patrocínio, promoção, publicidade ou atividade de marketing.  

Patrocínio e veiculação de marcas em uniformes por emissoras de TV

A LGE reviveu uma antiga discussão sobre a veiculação de marcas de emissoras de televisão em uniformes de competições.  

Em julho de 2000, foi editada a Lei 9.981/2000, que proibiu que as emissoras patrocinassem os clubes. Aproveitando a brecha na legislação, em 18.1.2001, durante a partida decisiva da Copa João Havelange, transmitida pela TV Globo, o Vasco da Gama entrou em campo estampando em seu uniforme o logotipo do SBT, que não era seu patrocinador[2]. A manobra foi arquitetada por Eurico Miranda com o objetivo de provocar a Globo, após críticas pela queda de um alambrado provocada pela torcida organizada do Vasco[3].  

A repercussão foi tanta que, em 15 de maio de 2003, a Lei 10.672/2003 alterou a Lei Pelé para incluir os parágrafos 5º e 6º no artigo 27-A e impedir, além do patrocínio, a veiculação da marca de “empresas detentoras de concessão, permissão ou autorização para exploração de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como de televisão por assinatura” nos uniformes de competições dos clubes.  

Anos depois, debateu-se o enquadramento de serviços de streaming (Amazon Prime, Netflix, Globoplay e outros) na vedação legal, como empresas “de televisão por assinatura”. A questão ganhou visibilidade quando o São Paulo estampou o nome de seu patrocinador (Amazon Prime Video) em seu uniforme durante a Copa Libertadores. Porém, como a competição é organizada pela Conmebol, a Lei Pelé não poderia ser aplicada ao caso[4], de modo que a discussão não foi adiante.  

Destaca-se, no entanto, que o serviço de televisão por assinatura é regulado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que obriga, por exemplo, a disponibilização de uma lista de canais obrigatórios, o que não ocorre nos serviços Over-the-Top (OTTs) de vídeo streaming.  

Após tentativas malsucedidas de revogar os parágrafos da Lei Pelé (i.e., MP 984/2020 e PL 2336/2021), o artigo 160, §9º da LGE passou a prever que não constitui “prática de proveito econômico indevido ou ilegítimo a veiculação […] da própria marca e a de seus canais e dos títulos de seus programas nos uniformes de competições das entidades esportivas e nos demais meios de comunicação”.  

Dessa forma, ao menos em leitura preliminar, continua sendo proibido o patrocínio dos clubes pelas emissoras de televisão, em razão da não revogação da Lei Pelé. Porém, tendo em vista o critério cronológico e em atenção à Lei de Introdução às normas do direito brasileiro, a LGE novamente permitiu que os logotipos estejam estampados nos uniformes de competições esportivas.  

Alterações legislativas

Mesmo tão recente, a LGE já sofreu modificações5 e o presidente da República admitiu a existência de problemas na lei[6]. Diante disso, é provável que alterações pontuais continuem sendo realizadas pelo Congresso Nacional nos próximos meses.

[1] Vide mensagem de veto da LGE. 

[2] Videhttps://leiemcampo.com.br/a-possibilidade-de-patrocinio-de-clubes-de-futebol-por-emissoras-de-televisao/  

[3] Videhttps://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2019/03/12/maior-polemica-eurico-peitou-globo-e-xingou-garotinho-em-final-tragica.htm  

[4] Videhttps://leiemcampo.com.br/sao-paulo-eliminado-da-libertadores-e-o-que-diz-a-lei-pele/  

[5] Vide Lei n. 14.614 de 3 de julho de 2023. 

[6] Videhttps://www.otempo.com.br/politica/governo/lula-admite-problemas-na-lei-geral-do-esporte-e-busca-acordo-1.2960216  

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