Defensoria recomenda à Prefeitura de SP a retirada do muro e gradis da Cracolândia; MP apura


Órgão cita arquitetura hostil para afastar e isolar a população, criando restrição de circulação de pessoas em vulnerabilidade. O g1 revelou a existência do muro, construído há seis meses, em reportagem publicada nesta quarta-feira (15). Gestão Nunes afirma que o muro não é usado para confinamento. Prefeitura construiu muro em área da Cracolândia, no Centro de SP
Reprodução/TV Globo
A Defensoria Pública de São Paulo emitiu um ofício na tarde desta quarta-feira (15) recomendando que a Prefeitura retire os gradis, o muro e qualquer barreira física colocada na Rua dos Protestantes, na Cracolândia, que impeça a livre circulação de pessoas em vias e espaços públicos sem qualquer justificativa legal.
O ofício foi emitido após a reportagem publicada pelo g1 sobre o muro de 40 metros de extensão que foi levantado há seis meses e cerca, em conjunto com os gradis, um triângulo entre as ruas Protestantes, Gusmões e General Couto Magalhães, na região da Santa Ifigênia.
A gestão Nunes afirma que o muro não é usado para confinamento dos frequentadores, no entanto, eles são aglomerados atrás da estrutura de concreto.
Prefeitura de SP constrói muro de 40 metros de extensão e confina Cracolândia
Relatório da Defensoria de SP chamou área cercada por gradis e muro da prefeitura de ‘curral humano’; vídeo mostra grupo sendo forçado a ir ao local
Na recomendação, é reforçado que as barreiras impedem a “livre circulação das pessoas, o acesso à água potável e banheiros e que tal estratégia já foi adotada em outras oportunidades e não há qualquer comprovação de sua eficiência para atingir os objetivos declarados de melhor atender os usuários”.
A ação da prefeitura também é classificada pelo órgão como uma arquitetura hostil, que tem como objetivo afastar a população em situação de rua do local, que passam a ser isoladas no espaço, configurando uma prática discriminatória.
Nesta quarta, o Ministério Público de São Paulo informou que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Capital vai apurar o caso.
Frequentadores da Cracolândia em triângulo cercado no Centro.
Divulgação/ Defensoria Pública de SP
A Defensoria também afirma que no dia 9 de dezembro do ano passado, questionou a gestão sobre os gradis e foi respondido que eles se faziam necessários para “segurança dos usuários e bem-estar da população local”. E requisitou uma cópia do procedimento administrativo que “culminou no ato administrativo executivo de colocação de gradis/muros na Cracolândia situada no centro histórico da Cidade de São Paulo, a fim de verificar sua legalidade e motivação.”
Relatório
Defensoria gravou GCMs ‘escoltando’ usuários até área de muro na Cracolândia em SP
Em um relatório feito em junho, logo após a construção do muro, a Defensoria chamou a área cercada por um muro e gradis na Cracolândia, no Centro, de “curral humano” e descreveu que os usuários eram escoltados por viaturas da Guarda Civil Metropolitana e direcionados para a área cercada em grupos.
Um vídeo gravado por agentes da Defensoria mostra uma viatura seguindo um grupo, até que um homem começa a gritar que está “sendo tratado igual bicho”. Dois agentes saem da viatura e se aproximam dele. (veja acima)
‘Fluxo’ da Cracolândia no Centro de SP.
William Santos/ TV Globo
“Trancam nóis em dois horários: 9 da manhã aproximadamente e depois, às 14:00, depois do almoço. E ficamos trancados dentro do fluxo, sem nenhuma cobertura, sem sombra. Se está chovendo, a gente fica na chuva, não tem nem aí. Não tem água, não tem comida, não tem banheiro. A gente não pode fazer nada, fica ali trancado sob a opressão deles, jogando gás de pimenta e rindo da nossa cara”, afirmou.
O relatório ainda menciona truculência e agressão por parte dos agentes.
O muro
Prefeitura de SP constrói muro de 40 metros de extensão e confina Cracolândia
Os usuários ficam aglomerados atrás do muro, em uma área formada pela Rua dos Protestantes e a Rua dos Gusmões, que são cercadas pela gestão municipal com gradis.
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A prefeitura argumenta que a construção, dentre outras medidas, ocorreu para melhorar o atendimento dos usuários, garantir mais segurança para as equipes de saúde e assistência social e facilitar o trânsito de veículos na região.
A administração municipal diz ainda que, entre janeiro e dezembro de 2024, houve redução, na média, de 73,14% de pessoas no local (leia mais ao final da reportagem).
Prefeitura de SP constrói muro na Cracolândia
Arte/g1
Em junho de 2024, quando o muro de concreto já estava em pé, a prefeitura instalou gradis e delimitou ainda mais o espaço de usuários. Na época, o g1 publicou uma reportagem sobre os gradis. O uso do gradil foi decidido durante reunião entre agentes estaduais e municipais das áreas da saúde, assistência social e segurança.
Ativista fala em ‘campo de concentração de usuários’
Para um representante do coletivo Craco Resiste, no entanto, o muro fecha “um triângulo no fluxo” e cria um “campo de concentração de usuários”.
Com o muro e os gradis, a região vira um triângulo cercado. Em tese, os usuários são livres para sair e entrar no local, mas, segundo ativistas, são direcionados pelos guardas civis sempre para a mesma área.
Para entrar no cerco, eles passam por revistas, que seriam para retirar coisas ilícitas, segundo ativistas.
Para Roberta Costa, da Craco Resiste, o muro foi levantado para manter os usuários no espaço e “cobrir” a visão da Cracolândia para quem passa de carro pela Rua General Couto Magalhães.
“A gente vive hoje na cidade uma cena absurda e bizarra de violência contra as pessoas que estão desprotegidas socialmente. É uma coisa que não vem de agora, já faz muitos anos que o poder público viola essas pessoas”, critica.
Na avaliação dela, a situação só piorou. “O que a gente viu acontecer no ano passado está num nível muito bizarro, que, inclusive, parece visualmente um campo de concentração”, diz.
Roberta afirma que o muro “encarcerou” os usuários, e os movimentos de direitos humanos são impedidos de entrar na área para prestar serviço a eles. Ela conta que tentaram fazer uma ação de Natal no dia 22 de dezembro com frutas, comida e arte, mas foram impedidos de se aproximar dos usuários.
Ação realizada pela Craco Resiste no Natal.
Arquivo pessoal/ Luca Meola
Não cuidam e também nos impedem de cuidar. Esse triângulo é delimitado por esse muro que foi construído para as pessoas com carro não verem as pessoas que estão ali. E quem quer sair das grades ou ficar na calçada – do outro lado da rua – é comum receber spray de pimenta na cara para voltar para a grade.
De acordo com os documentos da Subprefeitura da Sé, o muro começou a ser erguido no final de maio e foi concluído no final de junho. O aceite definitivo da obra pela subprefeitura, feito após a inspeção do local, ainda não aconteceu, segundo o processo administrativo.
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Usuários se espalham
Enquanto houve redução de pessoas no fluxo da Cracolândia, outras regiões da capital registraram o surgimento de aglomerações de dependentes químicos.
São os casos da Avenida Jornalista Roberto Marinho, na Zona Sul da capital, e da Rua Doutor Avelino Chaves, na Vila Leopoldina, Zona Oeste.
Atualmente, na região central da cidade, o fluxo confinado pelo muro na Rua dos Protestantes é considerado o único ativo.
Reportagem da TV Globo mostrou que a média diária de usuários presentes no período da manhã foi de 511, em 2023, para 144, em 2024. Já à tarde e à noite, a média caiu de 467 para 149 pessoas.
Embora tenha diminuído a quantidade de pessoas nesse ponto, não houve queda no número de usuários.
Uma das maneiras de medir o uso de drogas por região é o nível de atendimento no hub de cuidados em crack e outras drogas, que é administrado pelo governo estadual.
Segundo o diretor da unidade do Centro, Quirino Cordeiro, a quantidade de dependentes, na verdade, só tem aumentado.
Essa tem sido uma constância no serviço, ou seja, temos atendido cada vez mais pacientes com dependência química e que estão em situação de rua aqui na região central de São Paulo.
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O que diz o contrato de construção do muro
No contrato, a obra é descrita para “a construção de muros de fechamento parcial do imóvel localizado na Rua General Couto Magalhães, esquina com a Rua dos Protestantes”. O imóvel em questão parece estar abandonado.
O contrato foi fechado em 15 de abril de 2024. A empresa beneficiada pela contratação é a Kagimasua Construções Ltda., com sede na região.
O contrato foi precedido de licitação na modalidade concorrência. A Kagimasua ofereceu o menor valor para a construção do muro.
A concorrência foi aberta em fevereiro de 2024. Diversas empresas participaram do pregão com lances acima de R$ 100 mil, mas somente a Kagimasua teve a proposta negociada, segundo dados do Portal da Transparência.
A via mencionada fica em uma das áreas mais policiadas da cidade, onde estão localizados o Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc), o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), o Comando Geral da Guarda Civil Metropolitana (GCM), três batalhões da Polícia Militar, um batalhão da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) e duas delegacias.
Preço do muro
Croqui do muro.
Portal da Transparência Prefeitura de SP.
A empresa Kagimasua Construções foi autorizada a iniciar a obra em 2 de maio de 2024, com previsão para finalizar o muro em um mês. A empresa separou a construção do empreendimento em quatro etapas:
Administração local e canteiro de obras: onde foram colocados os valores gastos com engenheiro, encarregado de obra, um vigia, um tapume para ser colocado no local, placa de sinalização da obra e um portão metálico;
Valor de demolição de um tapume que ficava no local;
Remoção de entulho;
Fechamento de muro: onde foram colocados os valores da construção.
Foram gastos mais de R$ 6 mil em argamassa mista de cimento, cal e areia e mais de R$ 4 mil no reboco do muro. O material para levantar a estrutura de concreto custou mais de R$ 27,5 mil.
No pregão, a prefeitura não determina o valor, mas diz que os concorrentes precisam seguir o valor de mercado. No caso da prefeitura, o orçamento é feito com base na tabela de custos da própria gestão, que tem atualização todos os anos.
Segundo Claudia Passador, professora titular da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Administração Pública (Sbap), se o pregão seguiu todas as etapas conforme a lei, ele está correto, mas vale questionar se o valor foi bem utilizado.
“O valor é escolhido a partir do processo licitatório que ganha o menor preço entre as empresas que se candidataram para a construção do muro. A gente pode questionar a construção, se é efetivo, se foi o melhor uso dos recursos públicos”, afirma.
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Problema histórico
Problema que se arrasta há décadas na cidade de São Paulo sem solução, a Cracolândia é alvo constante de promessas por parte dos políticos.
Em sua primeira entrevista após assumir o governo do estado em 2023, Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu acabar com a Cracolândia.
A gente está conversando com a prefeitura e estaremos alinhados para dar efetividade para, por exemplo, dar habitação, fazer tratamento e tirar as pessoas das ruas dentro de uma lógica de confiança.
Mais tarde, em julho daquele ano, Tarcísio mudou o discurso, afirmando que iria transferir o fluxo para o Bom Retiro, também no Centro, onde fica o Complexo Prates com serviços públicos de atendimento a usuários de drogas. Após protestos de comerciantes e moradores da região, o governo desistiu da mudança.
O que diz a Prefeitura de SP
Em uma primeira nota enviada à reportagem, a administração municipal disse que o muro foi erguido para substituir um tapume que havia no local. Depois, mandou uma segunda nota em que afirma que o muro irá ajudar no trabalho dos assistentes sociais e facilitar o trânsito de veículos. Em seguida, a Prefeitura encaminhou uma terceira nota afirmando que o muro não tem como objetivo confinar os usuários.
Veja as notas abaixo:
Primeira nota da Prefeitura de SP:
“A Prefeitura de São Paulo informa que, desde agosto de 2023, a Cena Aberta de Uso (CAU) está concentrada na Rua dos Protestantes e é monitorada pelo Programa Dronepol, da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU). Entre janeiro e dezembro de 2024, houve redução de 73,14% na média de pessoas no local.
Em relação à obra na Rua General Couto de Magalhães, a Subprefeitura Sé realizou a construção de um muro para substituir o tapume que havia no local, que era constantemente danificado. A ação favorece a segurança de moradores, trabalhadores e demais transeuntes.”
Segunda nota da Prefeitura de SP:
“A Subprefeitura Sé informa que a obra mencionada foi contratada por meio de licitação, respeitando todos os critérios técnicos e de transparência. O valor total teve como base as tabelas de custo estabelecidas pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB).
Para melhorar as condições de atendimento às pessoas mais vulneráveis dentro do fluxo, a Prefeitura implantou em 2024 o espaço da saúde em parte da Rua dos Protestantes, favorecendo o trabalho dos agentes de saúde e assistência social, garantindo maior segurança para as equipes e facilitando o trânsito de veículos. Somente entre janeiro e novembro de 2024, as ações da Prefeitura no local resultaram em 18.714 encaminhamentos para serviços e equipamentos municipais.
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) ressalta que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) atua de forma contínua nas Cenas Abertas de Uso, desempenhando patrulhamento preventivo e oferecendo apoio e proteção aos agentes públicos nos serviços de zeladoria, saúde e assistência social. A SMSU reitera que não compactua com desvios de conduta por parte de agentes da GCM e assegura que todas as denúncias recebidas são rigorosamente investigadas.”
Terceira nota da Prefeitura de SP
A Prefeitura de São Paulo contesta a divulgação de ilações sem fundamentos a respeito do trabalho de acolhimento e assistência à saúde sem precedentes que está sendo feito pela atual gestão na Cena Aberta de Uso (CAU) na Rua dos Protestantes. Seguem esclarecimentos:
1. O muro mencionado pela reportagem foi instalado onde já existiam tapumes de metal para fechamento de uma área pública. A troca dele foi realizada para proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade, além de moradores e pedestres, e não para “confinamento”.
2. Os tapumes eram quebrados com frequência, oferecendo risco de ferimentos a essas pessoas. Por isso, a substituição por alvenaria.
3. De novo, não há confinamento. Pelo contrário. Para garantir a segurança, acesso e atendimento às pessoas que ocupavam o terreno público, a Prefeitura retirou os tapumes do lado da Rua dos Protestantes, abrindo a área. O trecho ao lado da Rua Couto de Magalhães foi mantido para proteção das mesmas em decorrência do fluxo de veículos na via e circulação nas calçadas.
4. Além da substituição dos tapumes pelo muro, a Prefeitura também fez melhorias no piso da área ocupada para as pessoas em situação de vulnerabilidade. Portanto, não são verdadeiras as afirmações de que a administração municipal atuou na região com outros interesses que não sejam a assistência e acolhimento às pessoas em vulnerabilidade na Cena Aberta de Uso.
Muro na Cracolândia
Deslange Paiva/g1
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