Mariposa ou beija-flor? Inseto presente em jardins confunde observadores desde o século XVI


De hábitos diurnos, essas mariposas possuem ‘cauda’, voam rapidamente e visitam as mesmas flores que beija-flores. Mariposa-beija-flor possui hábito diurno e visita as mesmas flores que os beija-flores
Luciano Lima
Imagine que você está sentado próximo a uma área verde repleta de flores miúdas e coloridas, como lantanas, por exemplo. De repente esse jardim recebe a visita de um ser alado, ágil, e discreto nas cores, mas com uma faixa característica branca nas costas. A velocidade do bichinho instiga a curiosidade e ao mesmo tempo dificulta detalhes da observação, e logo vem o questionamento: ‘Mas afinal, o que é isso?’, ‘Uma borboleta? Uma ave? Parece um beija-flor, mas será que é?’
Essa pode ser uma situação comum de ocorrer atualmente, principalmente agora no verão, pois é o período de maior visualização desse bicho. A situação que causa dúvida em quem está observando é antiga, permeia muitos séculos. Por isso, não se sinta mal caso você não consiga identificar qual animal está visitando as flores do seu jardim. Naturalistas, povos originários e especialistas também foram confundidos.
E o motivo para tanto alvoroço é um só: trata-se de uma mariposa que se assemelha a um beija-flor, na forma de voar, na aparência e também por visitar as mesmas flores que essas aves. Toda essa semelhança lhe rendeu o nome popular de mariposa-beija-flor. No Brasil existem pelo menos cinco espécies distintas desse inseto, que diferente das demais, possui o hábito diurno.
Observadores registram mariposa-beija-flor em quintais
Recentemente telespectadores do programa Terra da Gente receberam a visita dessa mariposa em casa e, claro, que eles aproveitaram para garantir uma imagem da espécie. Mas mesmo filmando o bicho de perto, eles tiveram dúvida do que estavam observando.
“Estávamos sentados na porta de casa e de repente apareceram várias delas, achamos que poderiam ser minis beija-flores pelo fato de parecer com o beija-flor tradicional, nunca tínhamos visto antes essas mariposas”, conta Rodrigo Silvério Leme, morador de Ribeirão Preto (SP).
Na ocasião, ele relatou que observou mais de 10 mariposas-beija-flor nas flores da árvore dama-da-noite. “Ficamos encantados com essa aparição”, acrescenta.
Quem também teve a sorte de ver esse inseto misterioso foi a Ana Mattos. Ela conseguiu observar a mariposa no jardim de onde mora em Bebedouro (SP). “Eu a observei sem querer, achei que fosse uma borboleta, mas vi que era muito rápida e nem consegui fotografar. Resolvi fazer um vídeo e vi que ela ia nas florezinhas como um beija-flor mesmo, era muito linda e diferente”, comenta.
Mariposa-beija-flor é avistada com mais frequência entre primavera e verão
Felipe Amorim
As mariposas-beija-flor pertencem à família Sphingidae, também conhecida como esfingídeos e compreende mais de 200 representantes apenas no Brasil. A maioria das espécies observadas no país pertencem ao gênero Aellopos, mas Eupyrrhoglossum sagra e algumas espécies de outros gêneros também podem ser observadas mais raramente.
Devido ao seu hábito diurno e por se alimentarem em flores comumente visitada por beija-flores, as mariposas-beija-flor são consideradas um subgrupo pelo comportamento distinto dos demais esfingídeos ‘parentes’.
Registro de ovo de mariposa depositado em folha
Felipe Amorim
Avistamentos
No Brasil essas mariposas são observadas com mais frequência entre a primavera e verão. De acordo com a plataforma Inaturalist, em que observadores da natureza compartilham registros das espécies de animais e vegetais pelo mundo, as observações desse inseto são mais frequentes entre os meses de novembro e março. Mais de 450 registros feitos em nosso país foram compartilhados por lá.
“No início da primavera elas estão se alimentando bastante e armazenando energia para a reprodução. As fêmeas precisa produzir os ovos e encontrar as plantas hospedeiras. Já os machos utilizam a energia para encontrar o máximo de fêmeas que puderem. Ao final da primavera e início do verão é comum vê-las colocando ovos nas plantas hospedeiras e agora é o momento de encontrarmos larvas dessa mariposa se alimentando das folhas. Então as pessoas devem estar vendo a mariposa-beija-flor, porque os animais estão se reproduzindo plenamente e necessitam do néctar das flores para suprir as suas demandas energéticas”, comenta Felipe Amorim, biólogo do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Botucatu, que se dedica há mais de 20 anos no estudo dos esfingídeos, (família das mariposas-beija-flor) e suas interações com as flores em busca do néctar.
Tamanho, modo de voo e coloração tornam ave e inseto semelhantes
Fotos: Ananda Porto/TG
Inseto x beija-flor
A maioria das espécies de mariposa-beija-flor que são encontradas no Brasil, apresentam características singulares, além da forma de voar, possuem três detalhes que a tornam realmente parecidas com os colibris: possuem uma língua – denominada probóscide – que ao ser alongada para captar o néctar das flores, remete a um ‘bico’. Outra curiosidade é que elas têm uma espécie de ‘cauda’ que auxilia a execução de movimentos rápidos, assim como os beija-flores fazem. E em terceiro lugar, algumas espécies, apresentam uma faixa branca no dorso, tal como algumas espécies de beija-flores observadas no Brasil.
Esse detalhe, portanto, é um dos principais e mais instigantes do bicho, pois o risco esbranquiçado no corpo do inseto é idêntico ao de dois beija-flores que pertencem ao gênero Lophornis, o topetinho-vermelho (Lophornis magnificus), e o topetinho-verde (Lophornis chalybeus), considerados uns dos menores beija-flores do nosso país, não ultrapassam os nove centímetros, muito similar ao porte das mariposas-beija-flor.
Mariposa-beija-flor tem hábito diurno o que não é comum para mariposas
Maurício Figueira
Mas afinal, existe uma dica para identificar e diferenciar durante a observação que se trata de fato de uma mariposa e não uma ave? A resposta é sim. É preciso reparar bem em um detalhe especial.
“Se você vir de perto, você vai perceber que como todas as mariposas e borboletas, essa mariposa possui um par de antenas. Então se você observar atentamente e com cuidado na hora que ela está visitando uma flor, irá perceber que aquelas duas anteninhas mostram que de fato se trata de um inseto, e não de uma ave, no caso, de um beija-flor”, explica Amorim.
Tal semelhança é mera coincidência?
Compreender a semelhança entre esses dois seres se torna mais fácil após explicações e dicas, mas ainda restam dúvidas sobre tal acontecimento. Por qual motivo a mariposa se assemelha ao beija-flor, seria apenas uma coincidência da natureza? Esse foi o questionamento que o pesquisador fez para si e que ‘provocou’ a ciência.
Não se sabe ainda qual a verdadeira resposta para essa pergunta, porém existem hipóteses de que para o inseto, essa aparência seria vantajosa, por isso ele “imita”, ou “mimetiza”, beija-flores, algumas espécies mimetizam especificamente beija-flores do gênero Lophornis. Ao se assemelharem a essas aves, as mariposas-beija-flor são confundidas com elas, e não correm o risco de serem predadas por aves insetívoras, por exemplo, o que lhe garante maior taxa de sobrevivência.
Mariposa-beija-flor costuma visitar flores coloridas
Ananda Porto/TG
Caso raro e inédito
Em busca de uma resposta para tal semelhança do inseto com a ave, Felipe propõe uma hipótese nova para comunidade científica. Um tipo de mimetismo exclusivo dessas mariposas do gênero Aellopos.
Mimetismo é o termo que usamos para se referir a casos de diferentes organismos que se assemelham e podem ser confundidos na natureza. Cientificamente se sabe da existência de pelo menos quatro tipos distintos de mimetismo (Mülleriano, Batesiano, mimetismo de recompensa, e mimetismo agressivo), porém o caso da mariposa-beija-flor seria uma situação exclusiva, e que não se encaixa em nenhum dos padrões já conhecidos.
“Por que essa mariposa viria a imitar um beija-flor? Se a hipótese for confirmada quer dizer que parecer-se com um beija-flor, confere para ela uma vantagem na qual ela evita de ser predada pelo fato de não se parecer com um inseto, ou seja, o alimento das aves insetívoras, que compreendem os seus principais predadores”, explica o pesquisador Felipe Amorim.
Para comprovar esse caso, portanto, é necessário realizar alguns experimentos em que o inseto seja exposto para aves insetívoras diante de diferentes condições e comparar a taxa de mortalidade dessas mariposas frente aos predadores insetívoros nessas distintas situações, inclusive manipulando algumas características dessas mariposas. “Existe uma série de experimentos que precisam ser realizados para que a gente possa provar de fato que isso se trata de um mimetismo, pois pode não ser”, acrescenta.
Ilustração no livro ‘Ornitologia Brasileira’ retrata semelhança entre inseto e mariposa
Reprodução
Relatos históricos de naturalistas
Observar a mariposa-beija-flor voando pelo jardim é também uma forma de viajar no tempo, pois há muitos séculos esse pequeno inseto intriga indígenas e exploradores naturalistas.
Aliás, eles foram os primeiros a se confundirem com o bicho. O mistério era tanto, que a partir dessas observações pioneiras nasceram lendas, como se em um passe de mágica o inseto pudesse se transformar em ave e vice e versa.
“É muito legal que essa mariposa permeia lendas urbanas desde muito tempo no Brasil, inclusive ela está dentro dessa lenda de maneira tal que as pessoas acreditavam que elas se transmutavam em beija-flor”, acrescenta Felipe.
Faixa branca na região do dorso se assemelha a do beija-flor topetinho-verde
Luciano Lima
As histórias dos povos originários eram compartilhadas oralmente, porém no século XVI o padre jesuíta José de Anchieta se encarregou de eternizar os dialetos em cartas. Em um trecho da carta de São Vicente de 1560, ele menciona: “Há ainda outros passarinhos, chamado guainumbi. Os mais pequenos de todos: alimenta-se só de orvalho. Desses há vários gêneros, dos quais afirmam todos que se gera da borboleta”.
Fernão Cardim, outro jesuíta, também mencionou sobre essa transformação. Ele diz que viu o surgimento do bico do beija-flor, porém na realidade, o que ele estava observando era o desenrolar da ‘probóscide’ do inseto, o que seria a língua dele para coletar o néctar.
Posteriormente outros naturalistas também relataram esse caso do inseto que vira ave, como por exemplo, o inglês Henry Bates no século XIV. Em uma expedição ele conta que fazia coleta de beija-flores, e chegou a atirar nas mariposas acreditando que eram beija-flores e quando foi capturar o animal percebeu que se tratava de um inseto.
De lendas, histórias a observações caseiras, a mariposa-beija-flor é um exemplo de que na natureza existem mistérios surpreendentes e não tão simples de serem compreendidos.
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