Quem foi Castelo Branco, presidente que pode ter mausoléu substituído por monumento a abolicionistas cearenses

Mausoléu construído para receber restos mortais do presidente nascido no Ceará será substituído por homenagem a quem combateu escravidão, anunciou governador Elmano de Freitas. O Mausoléu Castelo Branco fica situado no Palácio da Abolição, sede administrativa do governo do Ceará.
Galeria de Presidentes Governo Federal / Google Maps
O Mausoléu Castelo Branco, situado em Fortaleza, deve ter sua função original alterada. No futuro, o espaço pode homenagear líderes abolicionistas do estado, conforme anúncio do governador do Ceará, Elmano de Freitas. Com a medida, o monumento abandonaria a referência a Humberto Castelo Branco, articulador do golpe militar de 1964 e primeiro presidente do Brasil no período.
Castelo Branco nasceu em Fortaleza, mas não teve tantos vínculos com o Ceará até se tornar presidente. Apesar de ter comandado a 10ª Região Militar, na capital cearense, por menos de dois anos na década de 1950, ele avançou na carreira militar com relações mais fortes fora do Nordeste.
No início da vida adulta, ele foi estudar no Rio de Janeiro, na Escola Militar de Realengo. Era o começo de uma trajetória que o levou a subir de patente como oficial e a atuar na Segunda Guerra Mundial, combatendo na Itália pela Força Expedicionária Brasileira (FEB). Castelo Branco se destacou como estrategista militar e por ter influência internacional, especialmente com os norte-americanos.
Foi ao ocupar o cargo de presidente da República que o cearense passou a ter maior influência política no próprio estado, detalha o historiador Airton de Farias, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e membro do Grupo de Estudos de História da Ditadura da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O Mausoléu Castelo Branco fica situado no Palácio da Abolição, sede administrativa do governo do Ceará.
Divulgação/Governo do Ceará
Em eleições indiretas após o golpe de 1964, ele se tornou o primeiro presidente do Brasil na ditadura militar. Foi o segundo cearense no mais alto cargo do país. O primeiro havia sido José Linhares, natural de Guaramiranga, que sucedeu Getúlio Vargas e ficou no poder por pouco mais de três meses, entre 1945 e 1946.
Como ilustra Airton de Farias, a influência de Castelo Branco se fez notar na sucessão do governador Virgílio Távora. Foi o presidente quem apontou, para o cargo, a figura de Plácido Castelo — que governou o estado e hoje dá nome à Arena Castelão. “Isso porque o Virgílio Távora não era bem visto por grupos que haviam dado o golpe de 64”, explica.
Figura central no golpe militar
Castelo Branco foi um dos articuladores da deposição do presidente João Goulart, em 1964. À época, o cearense ocupava o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército.
“O Castelo é um dos principais articuladores do golpe de 64. Ele tinha muito contato com grupos civis, empresários e grupos ligados à embaixada dos Estados Unidos. Ele lutou na Europa na Segunda Guerra Mundial, então ele tinha muitos contatos com os meios militares diplomáticos dos Estados Unidos. Inclusive esse apoio dos Estados Unidos é muito importante para que Castelo assuma a presidência com o golpe”, conta o historiador.
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Um dos outros pretendentes ao cargo era Costa e Silva, que se tornou o sucessor de Castelo Branco em 1967. Conhecido por posturas mais radicais, Costa e Silva não foi a escolha do primeiro momento.
Como detalha Airton, o nome do cearense representava uma alternativa mais palatável e gerava consenso entre os apoiadores. Ele aponta que alguns setores da sociedade apostavam no retorno à normalidade institucional após a intervenção militar, tendo se manifestado como arrependidos já nos últimos anos de mandato de Castelo Branco.
A construção histórica da figura moderada
O Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco toma posse como Presidente da República e faz seu pronunciamento com a faixa presidencial em 30 de abril de 1964
Arquivo/Estadão Conteúdo
A divisão dos personagens da ditadura entre militares moderados e ‘linha dura’ no ensino de História é criticada pelo pesquisador. Neste modelo, o primeiro presidente dá, inclusive, origem ao termo ‘castelista’. É uma forma de caracterizar os líderes e atores identificados como moderados.
Desta forma, a memória de Castelo Branco foi associada à figura de um ditador legalista que teria sido levado pelas circunstâncias.
Segundo detalha o historiador, havia muitas alas nas Forças Armadas com posições diferentes dependendo do tema que estivesse em discussão.
“Também é muito ingênuo achar que apenas a ‘linha dura’ pressionava, conseguia impor a sua vontade. Os moderados se beneficiavam também das medidas de força que eram adotadas. Eles concordavam, no final das contas, com o que estava sendo aplicado”, ressalta.
Devendo governar até 1966, Castelo Branco teve o mandato prorrogado, e as eleições presidenciais foram suspensas. Algumas medidas que serviram de base para um período de repressão e negação de direitos foram adotadas neste primeiro mandato.
Muitas vieram na forma de atos institucionais. No período, foi estabelecido o fim dos partidos políticos e a instalação do bipartidarismo. Assim, o país passou a ter apenas os partidos Aliança Renovadora Nacional (Arena) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Outra medida foi a aprovação da eleição indireta para presidente da República, com escolhas feitas entre os militares e referendadas pelo Congresso Nacional. Isto foi estendido também para as escolhas de governadores e assembleias estaduais.
Restrições a publicações da imprensa e prisões e exílios para opositores também foram práticas iniciadas sob a condução de Castelo Branco.
“Então hoje, a visão historiográfica que existe é de um governo totalitário de Castelo Branco, que preparou uma estrutura política que levaria ao posterior fechamento da ditadura em 1968, com o AI-5 do governo Costa e Silva”, conclui Airton.
O AI-5 a que se refere o historiador é o Ato Institucional 5, chamado de “golpe dentro do golpe”. Nele, o regime militar entrava em período mais rígido, com o fechamento do Congresso Nacional, a autorização para decretação do Estado de Sítio a qualquer momento e a consolidação de práticas como censura e tortura contra opositores.
Novos olhares para o passado
Construção do Mausoléu Castelo Branco, ao lado do Palácio da Abolição, sede administrativa do governo do Ceará.
José Alberto Cabral
Meses após deixar o governo, Castelo Branco morreu em um acidente de avião enquanto visitava o Ceará, em 1967. A iniciativa para a construção do monumento partiu do então governador Plácido Castelo, aponta Airton de Farias.
A obra foi inaugurada em 1972, quando o estado já era governado por César Cals. O mausoléu foi incorporado à arquitetura do Palácio da Abolição, sede administrativa da gestão estadual.
À época, os restos mortais de Castelo Branco e da esposa chegaram a Fortaleza com honras de chefe de Estado. O Brasil ainda vivia o regime militar, e a memória do ex-presidente era exaltada como a de um líder patriota e estrategista de guerra.
“O mausoléu atende dois predicativos. Ele exalta o regime que se instala, a ditadura. O que mostra, portanto, que havia muitos setores da sociedade que apoiavam que estava acontecendo. Um monumento desses não é à toa, não é construído se não tiver um certo consenso na sociedade. Mas também eu vejo como uma forma de exaltar o cearense que chegou à presidência da República”, comenta o historiador.
Mais de 50 anos depois, o anúncio do governador Elmano de Freitas chega para evidenciar mudanças no olhar para o mesmo regime. Ele pretende substituir o mausoléu a um monumento em homenagem a abolicionistas cearenses, a exemplo de Francisco José do Nascimento, mais conhecido como Dragão do Mar, um jangadeiro que passou a recusar fazer o transporte de escravizados.
Conhecido como Dragão do Mar, jangadeiro Francisco José do Nascimento foi incorporado à ‘propaganda’ do movimento abolicionista
André Valente/BBC
“A decisão está tomada. A secretaria da Cultura, junto à Secretaria de Direitos Humanos, tem a missão de garantir que no Palácio da Abolição não ficará o mausoléu de quem apoiou a ditadura”, afirmou o governador na última quinta-feira.
Na visão do historiador, será interessante observar as repercussões desta fala e se o projeto vai se concretizar. Isto porque, segundo analisa, a medida pode ser polêmica e “mexe no vespeiro” em um país que adotou postura conciliatória após o regime militar.
Em comparação com países vizinhos, como a Argentina, ele aponta que o Brasil não debateu abertamente ou puniu crimes cometidos no período. Desta forma, houve espaço para grupos que exaltam o regime militar ou para setores da sociedade que minimizam o tema.
Ainda segundo o pesquisador, a decisão do governador pode confrontar uma visão positiva construída sobre Castelo Branco.
“Creio que haverá muita pressão, inclusive talvez do próprio governo federal, que passa por um momento muito delicado na relação com as Forças Armadas, em virtude do que houve no começo, do envolvimento de grupos militares com os acampamentos e a tolerância com a tentativa de golpe”, observa ao mencionar a invasão das sedes dos três poderes no dia 8 de janeiro.
Em maio de 2022, a mudança de uso do Mausoléu Castelo Branco foi alvo de requerimento feito pelo deputado estadual Renato Roseno (Psol).
A justificativa mencionava a lei estadual 16.832, sancionada em 2019, proibindo a atribuição a prédios, rodovias, repartições e outros bens públicos em nome de pessoas que aparecem no relatório final da Comissão Nacional da Verdade como responsáveis por violações de direitos humanos.
A votação teve discussão acalorada na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), unindo parlamentares da base do governo estadual e a oposição, que apoiava o então presidente Jair Bolsonaro. O resultado foi a rejeição do requerimento, mantendo o mausoléu como um espaço em homenagem a Castelo Branco.
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