“Minha escrita é um sopro da alma”, diz autora e roteirista Renata Di Carmo

Foi no ápice de 1999, ainda na adolescência, que a atriz, autora e roteirista Renata Di Carmo viu os próprios textos ganhando vida e um brilho extra diante do olhar sensível e único de nomes reconhecidos da dramaturgia nacional.

Carioca, natural de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, hoje ela se consagra como uma das primeiras mulheres negras a ocupar as maiores salas de roteiro do Brasil.

Em 2024, celebrando os 25 anos de uma carreira potente enquanto roteirista, pautada na sensibilidade e no esforço diário para que a audiência possa se enxergar, a multiartista revisita a própria trajetória e compartilha a sua visão sobre as movimentações no cenário audiovisual do país.

“Quem é Renata é uma pergunta complexa. Talvez, a pergunta de milhões, já que está todo mundo no processo de descoberta”, brinca, em entrevista exclusiva à CNN.

“Mas, eu acredito que a Renata de hoje tem muito do que a Renata da infância foi. Uma menina com muitos questionamentos, com muitas indagações sobre a vida, sobre a realidade. Com uma curiosidade gigante sobre o mundo para além daquilo que os olhos dela poderiam imaginar”, acrescenta.

Renata Di Carmo fala sobre as tendências futuras no audiovisual brasileiro / Adri Lima/Divulgação

Diante das telas, Di Carmo acumula atuações em novelas como “Haja Coração” e “Mulheres Apaixonadas”, ambas da TV Globo. Na literatura, há destaque para a autoria do premiado livro infanto-juvenil “Anele – A Menina dos Olhos Mundo”.

Do outro lado das câmeras, seu próximo grande projeto, em que assume o papel de roteirista, teve as gravações concluídas em novembro de 2023. O tão aguardado spin-off de “Cidade de Deus”, da HBO Max, chegando celebrando mais de duas décadas de um dos maiores sucessos do cinema nacional.

À CNN, Renata também divide a experiência de chefiar a sala de roteiristas das séries “Toda Família Tem” (Amazon), “Humor Negro” (Multishow), e como roteirista da adaptação televisiva de “Torto Arado” (HBO) e da série “Candelária” (Netflix). Confira abaixo a entrevista completa.

Como você enxerga as mudanças ocorridas na audiovisual nacional nestes 25 anos de carreira? Tanto no que diz respeito a diversidade e equidade, tanto na inclusão de mulheres negras neste cenário.

R: Eu acho que é um cenário bem diferente, é uma construção que vem lá de trás, daqueles antepassados que, não necessariamente estavam atuando ou operando dentro do audiovisual, mas que estavam batalhando em lutas relacionadas a questões de gêneros, de raça, de igualdade. Tudo isso são formas de reimaginar e reorganizar o mundo dentro da nossa realidade de Brasil.

A gente sabe que tem muitas mulheres trabalhando no audiovisual desde sempre, só que elas eram invisibilizadas. Hoje, é possível enxergar outra realidade, ainda que esteja longe do ideal. De alguma forma, a gente já consegue ver o resultado de todas essas lutas, de pessoas que bateram na porta, que lutaram, que não acessaram esses espaços. Nós somos o resultado dessas pessoas, somos o resultado de Lélia González, de Chica, de muita gente incrível.

Como foi para você dar início a carreira longe de referências e saber que hoje é esse corpo negro, feminino e que inspira outros jovens que sonham em ocupar esses espaços?

R: É um processo curioso e que me emociona. Por vezes, alguém chega e fala que eu sou referência, que se inspira em mim ou, que conversar comigo, que ter uma troca, foi determinante.

Essas coisas me fazem olhar para trás e não apagar o que eu passei, mas, de alguma forma, entender que esse processo serviu e é parte de uma mensagem sobre um futuro possível. Isso, de alguma maneira, em algum lugar, é um conforto, mas não apaga o passado.

Como foi estar à frente do programa “Humor Negro” e ver que essa junção de roteiro e talento dos humoristas rendeu bons frutos?

R: Quando eu recebi o convite, não tinha agenda. Mas, quando olhei o projeto, falei: ‘preciso fazer’! Eu tive as primeiras oportunidades em audiovisual dentro do humor, mas, você poder criar a partir de um lugar de ressignificação do humor e do artista negro no humor, é muito significativo e emblemático.

Poder pensar essa dramaturgia e poder fazer isso através da perspectiva do belo, da inteligência e não é contrário, não diante da perspectiva depreciativa sobre nós, sobre a nossa cultura ou ainda ter que batalhar muito para a compreensão de que alguma coisa não pode ser dita, é muito importante. Nós estávamos ali fazendo uma construção de um outro lugar.

E escrever a adaptação televisiva de “Torto Arado”?

R: Um desafio, porque é um livro que tem uma trajetória incrível, um sucesso absurdo. O Itamar Vieira Junior é um escritor super sensível, com uma inteligência, uma escrita muito pessoal, então esse processo de adaptação também requer um cuidado em relação aquela obra e temática.

Estamos falando de um período pós-escravidão, tem tantas coisas que estão ali que são pouco ditas. É um universo pouco abordado, com personagens ricos, verdadeiros e que, ao mesmo tempo, tem um poder de comunicação com o mundo todo.

O desafio era esse, expandir aquele universo, mas manter o respeito em muitas das coisas que, na sala de roteiro, nós julgávamos ser fundamental e escolhemos manter. É um projeto que eu ainda não sei quando vai, de fato, ganhar as telas, mas estamos torcendo.

E como você definiria a sua escrita?

R: Eu acho que a minha escrita é um sopro da minha alma. Eu acho que ela diz muito de mim, mesmo nas variações, nas escolhas dos projetos que eu faço. É um sopro do espírito, uma manifestação do espírito de coisas que eu desejo resgatar em mim e na nossa história coletiva. É reimaginar essa existência dentro daquilo que eu sei que somos perfeitamente capazes.

O que podemos esperar para 2024, especialmente sobre “Cidade de Deus?”

R: Eu tenho alguns projetos que vim desenvolvendo ao longo desse ano e que estou ansiosa para ver. Um deles é “Cidade de Deus”, o outro é “Candelária” e o “Todo Família Tem”. Se a agenda não mudar, eu sei que eles serão lançados em 2024.

“Cidade de Deus” foi um filme divisor de águas na história do nosso cinema, então há toda uma expectativa sobre qual será essa nova abordagem já que estamos diante de um mundo bem diferente. Eu nem digo que essas discussões são outras, já que para pessoas que se entendem negras desde sempre ou que transitaram por um lugar da periferia ou comunidade, muitas dessas questões já estavam sendo discutidas, já nos atravessavam.

É uma produção que traz o olhar do protagonismo feminino, um olhar com a valorização dos corpos negros, da potência desses lugares enquanto agência. Não um espaço em que as pessoas estão esperando que outras lhe estendam a mão, mas um local de produção, de oportunidade, de empreendedorismo, de conhecimento e arte. Não é só crime.

Apesar de diferentes, todas as produções citadas têm algo em comum: a capacidade da audiência se ver. E isso eu acho que é o mais especial de tudo. Você olhar uma obra e se reconhecer. É uma audiência que corresponde ao que o Brasil é.

Aliás, você essa que essa é uma tendência para um futuro não tão longe?

R: Eu acho e espero que isso não mude. É a nossa capacidade de conseguir reproduzir o Brasil com cara de Brasil. Com preto, com branco, com indígena, com cigano, com mulher, com homem… com pluralidade. É importante se ver e ver os nossos.

Pelo avanço da tecnologia eu acho acho que as pessoas aguardam produções com muita imersão. No campo do sonho, um audiovisual cada vez mais comprometido com sustentabilidade, com controle de carbono. Também acho que há uma necessidade de um olhar que enxergue a beleza do simples, do que é corriqueiro, do dia a dia, do genuíno, obras que são formadas de pequenos eventos do dia. Isso emociona.

Para finalizar, o que você diria para a Renata de 1999?

R: Eu diria para ela ter calma, para confiar que as coisas iriam encontrar o seu lugar e, de alguma maneira, aproveitar o caminho. Às vezes, a gente é tão atravessado, esmagado por tantas coisas que vivemos num excesso de futuro, mas eu diria para ela respirar e ter calma.

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