Ferrogrão deve ser replanejada como vetor de desenvolvimento, não de impacto

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O Supremo Tribunal Federal (STF) pautou para o próximo dia 31 o julgamento da inconstitucionalidade na alteração dos limites do Parque e da Floresta Nacional Jamanxim para a passagem da ferrovia EF-170, a Ferrogrão. O trecho proposto inicialmente, além de cortar parte do parque, afetando a área originalmente destinada para proteção da fauna, flora e dos recursos naturais, teria potencial impacto em ao menos 48 terras indígenas.

Com 933 km de extensão, o projeto da ferrovia calcula o transporte de até 52 milhões de toneladas de commodities agrícolas ao ano, como soja, milho, açúcar, além de fertilizantes, derivados de petróleo e insumos agrícolas. O trajeto ligaria o município de Sinop, em Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará. Seriam nove anos de construção, com início das operações previsto para 2030.

A redução da área do Parque e da Floresta Nacional do Jamanxim foi encaminhada ainda em 2016, quatro anos depois da formalização do projeto da Ferrogrão, via MP 756/2016. Ocorre que o STF já decidiu em plenário que é inconstitucional a redução de limites de espaços territoriais especialmente protegidos por meio de Medida Provisória. Portanto, os limites dessas unidades de conservação não poderiam ter sido alterados por tal medida, mesmo que ela tenha sido convertida em lei.

Entre os territórios com potenciais impactos está o Parque Indígena do Xingu. Só nessa terra indígena, ao norte de Mato Grosso, há 16 povos habitantes. Também, possuem potenciais impactos as Terras Indígenas Munduruku, Panará, Kayapó, Capoto Jarina e Sawre Ba’pim, com presença de povos em isolamento voluntário, além de outras em diferentes etapas de demarcação. Conflitos em torno da BR-163, paralelamente a qual deve correr a Ferrogrão, já envolvem atividades ilegais como garimpo e grilagem, além de desmatamento, fogo, contaminação por agrotóxicos e envenenamento por mercúrio.

A Ferrogrão deve considerar e garantir os direitos socioculturais, territoriais e a dignidade da pessoa humana de quem pode ser potencialmente impactado com o empreendimento, assim como à garantia à consulta livre, prévia e informada a todos os povos envolvidos; ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; à manutenção da integridade de áreas protegidas, como terras indígenas e unidades de conservação, dentre outros.

É sabido que projetos de infraestrutura anteriores não trouxeram à população local a pujança econômica prometida. A logística, apontada como diferencial no caso da Ferrogrão, não basta como fim em si mesma, visando apenas atender uma demanda de mercado. O planejamento do território deve preceder a definição da infraestrutura necessária, e isso requer amplo debate com os diferentes setores da sociedade. Nesse cenário, a logística entraria como mais um componente de um processo de desenvolvimento que considere a realidade amazônica em suas diversidades sociais, culturais, territoriais, ambientais e climáticas.

A Ferrogrão deve, também, ser repensada e replanejada para que seja, realmente, um vetor de desenvolvimento e não um vetor de impacto negativo, segregação, desagregação e perda de direitos. Vale mais um planejamento adequado do trajeto, com ordenamento do território, não só para a ferrovia, mas incluindo as devidas salvaguardas socioambientais, ordenamento do território e as estratégias de inclusão socioeconômica e desenvolvimento local.

Qualquer processo de desenvolvimento na Amazônia, naturalmente, pode requerer a implantação de infraestrutura e logística. O que precisa ser discutido, no caso da Ferrogrão e outros tantos projetos, é como o planejamento e a implementação se relacionam com parâmetros modernos de sustentabilidade, considerando as áreas protegidas, terras indígenas, o conjunto de ativos ambientais, como as emissões de carbono, e de recursos naturais. É preciso assegurar, também, que infraestrutura e logística não irão impactar os modos de vida, os territórios e os direitos de populações locais, como povos indígenas, agricultores familiares e extrativistas, que vivem na região.

Mesmo que haja alteração nos valores do projeto, no caso da mudança de trajeto em função de uma área natural protegida, o custo se paga. Segundo estudos recentes, estima-se o prejuízo de US$ 1,9 bilhão só pela emissão de gases superaquecedores da atmosfera, que seriam liberados com o desmatamento previsto nos atuais moldes da obra. Esse custo ambiental corresponde a 60% do orçamento previsto para a implementação da ferrovia.

Considerada a perspectiva de avanço para a sustentabilidade e o desenvolvimento econômico de baixas emissões de gases de efeito estufa, não estamos em posição favorável para nos dar, como país, a chance de voltar a repetir erros já cometidos. Existem caminhos de harmonização dos diferentes interesses e direitos relacionados ao caso. O Brasil não pode prescindir de um conjunto de estruturas e logísticas para o processo de desenvolvimento da Amazônia, mas o modus operandi deve ser debatido e elaborado de forma participativa na busca de um entendimento que atenda as diferentes visões, interesses e direitos, seguindo a tendência global de desenvolvimento de baixas emissões, com ampla participação, protagonismo de povos e comunidades tradicionais e repartição de benefícios decorrentes da potencial riqueza a ser produzida em empreendimentos como estes.

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