Acordos de leniência municipais: reflexões a partir do caso de São Paulo

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No início de maio, o município de São Paulo formalizou pela primeira vez em sua história um acordo de leniência baseado na Lei Anticorrupção. A negociação teve como objeto a oferta de vantagens indevidas a médicos atuantes em hospitais locais e, subsidiariamente, o potencial direcionamento de licitações.   

Como resultado, o município recebeu informações para alavancar sua capacidade investigativa. Ainda, em até 60 dias receberá mais de R$ 10 milhões, correspondentes ao ressarcimento de danos, ao perdimento de bens da empresa – que, por ser sucessora da companhia motivadora das condutas, assumiu a responsabilidade objetiva prevista em lei –, e à multa disciplinada pela LAC. A colaboradora também se comprometeu a complementar seu já existente programa de integridade.  

O acordo de leniência em São Paulo é caso inequívoco de sucesso, alcançado apenas a partir da resiliência e da efetiva cooperação entre partícipes públicos e privados. Porém, nos quase dez anos de Lei Anticorrupção, ele ainda é exceção. Se por um lado a Controladoria-Geral da União (CGU) já assinou ao menos 25 acordos, e atualmente negocia dezenas, por outro, acordos municipais ainda são raros e pouco conhecidos. 

As dificuldades em âmbito municipal têm razão de ser. A despeito do empenho e da boa vontade de agentes públicos e privados, em regra faltam a estrutura, a expertise e a cultura negocial inerente a tais processos. E sobram dúvidas procedimentais e de mérito, com o consequente custo financeiro e temporal que uma negociação extensa acarreta.  

A exitosa experiência negocial com o município de São Paulo, no entanto, permite identificar lições e pré-requisitos para o sucesso. Demonstra que há elementos institucionais e de cultura burocrática tão relevantes quanto debates jurídicos específicos, que merecem ser devidamente compreendidos para o alcance de bons resultados em tratativas municipais.  

De início, destaca-se o papel das autoridades públicas locais. É que ao contrário da CGU, que pré-dispõe de precedentes, entendimentos fixados e estrutura especializada voltada a negociações do gênero – a Secretaria de Integridade Privada e sua Diretoria de Acordos de Leniência –, é comum (e compreensível) que os municípios se encontrem em outro estágio institucional. Em regra, não há histórico consolidado, equipes especificamente voltadas ao tema, precedentes e procedimentos internos que viabilizem decisões mais ágeis e seguras.  

Nesse sentido, contar com lideranças locais que compreendam a perspectiva negocial e que estejam dispostas a amparar verdadeira mudança de cultura em seu ente em prol de sua capacidade investigativa futura, como ocorreu em São Paulo, é fundamental. Tais alterações não são triviais, e passam por aspectos políticos, técnicos, procedimentais e culturais. Apenas a partir do patrocínio firme de lideranças políticas e burocráticas que aceitem tal desafio é que se garantem as bases mínimas para um processo confiável.  

Também merece destaque o papel da liderança das empresas. É que negociar acordos enquanto se constroem as bases locais para uma negociação confiável demanda tempo (e dinheiro). Enfrenta idas e vindas, entendimentos divergentes dentro da própria autoridade, revisita a assuntos sedimentados em âmbito federal, divergências interpretativas. Em alguns casos, alterações legislativas – como a da Lei de Improbidade – exigem retomada de pontos já superados.   

Assim, o papel do colaborador disposto a assinar potencial acordo em nível local também é chave. Compreender as peculiaridades negociais perante o ente, reforçar sistematicamente a atuação colaborativa e aceitar potenciais custos de tempo (e de recursos) são atitudes incomuns. Apenas empresas bastante seguras em seu propósito e que reiterem a confiança quanto ao objetivo final permanecem nas tratativas.  

Vencidos tais pressupostos institucionais, ainda é necessário pôr em perspectiva um modelo de acordo de leniência que justificadamente habita o imaginário comum, mas que pode resultar em expectativas desproporcionais ao âmbito local.  

Especialmente sob a luz do gigantismo da lava-jato, os últimos anos produziram compromissos de valores multimilionários, prazos longos de cumprimento, recomendações complexas de melhorias em programas de compliance e arranjos de monitoramento custosos e detalhados. Não há senões quando os objetos da leniência assim exigem. Todavia, tal desenho não é condição sine qua non para o real cumprimento dos objetivos da legislação anticorrupção.   

É razoável imaginar que, em âmbito municipal, as condutas assumidas podem envolver cifras menos significativas do que aquelas com as quais a CGU se depara. E que, uma vez cumpridos todos os requisitos da lei, contornos menos complexos são plenamente possíveis, desde que adequados ao caso. Prazos e cifras menores não são, nem devem ser, sinônimo de irrelevância para o ente municipal, que em suma recupera valores, contribui para a integridade privada e ganha musculatura probatória para a potencial punição de outros agentes.   

A Lei Anticorrupção tem uma lógica particular de reparação de danos e multa, de colaboração via alavancagem investigativa, de melhoria significativa na cultura de integridade das empresas. Ela deve ser, inexoravelmente, observada. Leniências não devem ser mais brandas em sede municipal. Mas devem, sim, ser adequadas ao seu objeto, sem receios, afastando-se do fantasma financeiro e midiático que paira sobre a ferramenta.  

Finalmente, cabe destacar – e reforçar – o papel da CGU no processo de difusão federativa de conhecimento. Inequivocamente, a autoridade cumpre bem seu mister orientador perante o ambiente de integridade nacional, tal como prevê o artigo 67 do Decreto que regulamenta a Lei Anticorrupção. Ao longo dos últimos anos, tem disponibilizado ao público normas complementares, manuais orientativos, planilhas de avaliação de programas de integridade e de dosimetria de multas, minutas de acordo etc. Elabora materiais específicos, como cartilhas, participa de fóruns e de eventos para troca de experiências com entes públicos municipais.  

Não obstante, a política de integridade nacional avançaria de forma mais ágil, coerente e segura se essa atuação fosse ampliada e reforçada. Quanto mais transparência relativa a entendimentos e posições da CGU sobre questões procedimentais e de mérito replicáveis em outras esferas, por exemplo, melhor. Quanto mais difusão de boas (e más) experiências subnacionais, com trocas de entendimentos, melhor. Em suma, e a despeito da autonomia local, um papel ainda mais ativo na disseminação de conhecimento e no apoio a outros entes, especialmente em momentos de construção institucional, reforçaria a missão da CGU e auxiliaria a efetividade do sistema de integridade.  

Acordos de leniência em âmbito municipal se inserem num contexto desafiador. Para além dos debates jurídicos inerentes às negociações, há elementos institucionais, culturais e burocráticos que importam, e muito, para seu efetivo avanço. Autoridades e colaboradores privados comprometidos com mudanças de cultura, que compreendam a real dimensão de seus casos, e que tenham suporte cada vez mais frequente da CGU, oferecem bom começo. O caso recente de São Paulo pode servir de inspiração. 

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