As lições econômicas do ‘grande século’

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Considerado por muitos como um dos melhores livros de economia do ano passado, Slouching towards utopia: An economic history of the twentieth century, de J. Bradford DeLong[1], vale realmente a leitura.

O livro trata do que DeLong considera o “grande século 20”, que iria de 1870 até 2010. O corte temporal, segundo o autor, decorre do fato de que, durante esse período, o mundo viveu uma explosão de progresso e riqueza material, o que tornou possível e realizável a utopia de que, em algum dia, todos teriam alimentação, moradia e uma vida decente.

O “grande século” representa, portanto, um contraste com o período anterior, em que a humanidade convivia com a “armadilha Malthusiana”, ou seja, com a perspectiva de que, como o crescimento econômico não era compatível com o crescimento populacional, o cenário provável seria de escassez, fome e doença. Não é sem razão que a ciência econômica que se desenvolve no século 19 é essencialmente uma ciência da escassez – a dismal science.

DeLong até reconhece que Malthus, cuja obra foi escrita antes do “grande século”, tinha razões para o seu pessimismo. Entretanto, pontua que, a partir de 1870, uma série de revoluções nos transportes, comunicações, tecnologia e organizações trouxeram tal grau de progresso e prosperidade que finalmente foi possível cogitar da superação da “armadilha Malthusiana” e da busca por um mundo melhor para todos.

O autor nos apresenta uma série de números e estatísticas para demonstrar a grandeza de todas as modificações ocorridas no período. Embora não negue que houve problemas – tais como o da distribuição desigual da riqueza, inclusive no contexto geopolítico, o que impediu que o Sul global tivesse o mesmo grau de prosperidade do Norte –, insiste no fato de que, ainda assim, se poderia vislumbrar uma trajetória que culminasse na realização da utopia.

Outra observação importante é que a história de progresso e crescimento econômico que caracterizou o “grande século” esteve longe de ser linear, apresentando várias fases de bloqueio ou retrocesso, como as guerras mundiais e as ideologias totalitárias.

Para compreender o “grande século”, DeLong confere uma grande importância ao período que vai de 1870 até 1914, marcado por acelerada globalização que catapultou o crescimento econômico, já que inovações nos transportes e nas comunicações foram fundamentais para a internacionalização do comércio e dos investimentos e até mesmo para as migrações.

Mais do que isso, as classes trabalhadoras começaram a se beneficiar igualmente dos avanços econômicos, notadamente pelo aumento de salários. Não é sem razão que mesmo Keynes considerou o período que vai de 1870 a 1914 como uma verdadeira utopia econômica, capitaneada pelos Estados Unidos.

Verdade seja dita que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi responsável pelo primeiro bloqueio no caminho em direção à utopia, o que exigiu um governo ativo para tentar mitigar os efeitos econômicos nefastos do caos e destruição que resultaram do conflito. Aliás, esse mesmo governo forte foi igualmente necessário para conter os efeitos da crise resultante da quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

É importante ressaltar que, desde a Primeira Guerra Mundial e também no período entreguerras, a intervenção do Estado na economia foi intensa e fundamental para a recuperação econômica. Nesse sentido, DeLong mostra que os países que apostaram na austeridade foram os que mais sofreram enquanto aqueles que aumentaram o gasto governamental se recuperaram mais rapidamente. Nos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt resolveu o problema da crise no entreguerras aumentando o gasto público, regulando mercados financeiros e estabelecendo amplos programas sociais.

A retomada do caminho em direção à utopia foi novamente interrompida com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e as ideologias totalitárias que se sedimentam no período entreguerras. Entretanto, após o conflito, o mundo foi reordenado e o Estado, agindo com base nas contribuições do keynesianismo, conseguiu gerar crescimento e desenvolvimento inclusivo pelo período de 30 anos.

Daí por que o pós-Segunda Guerra manteve a estratégia de intervenção estatal na economia, o que possibilitou os chamados “30 anos gloriosos” de prosperidade econômica e inclusão. Como exemplo dos resultados, DeLong ressalta o fato de que, em 1973, as pessoas tinham de 2 a 3 vezes mais renda material do que os seus pais. Em razão de uma série de fatores, dentre os quais a tributação progressiva de renda e o aumento dos salários da classe média, houve redução de desigualdade.

Os “30 anos gloriosos” foram, portanto, um período de grande crescimento e inclusão, o que, segundo DeLong, colocou o mundo novamente no caminho em direção à utopia. Porém, os desafios já se anunciavam no plano intelectual, no qual cada vez mais eram difundidas as ideias que, a exemplo das propostas por Hayek, viriam a caracterizar o neoliberalismo da década de 1970.

Para DeLong, o neoliberalismo já parte de uma limitação inicial: não é possível imaginar que o mercado pode resolver todos os problemas dos indivíduos quando os únicos direitos que ele reconhece são os de propriedade. Logo, existem diversos outros direitos que, ao terem a sua eficácia condicionada à realização pelo mercado, simplesmente não são assegurados porque não são levados em consideração pela lógica do próprio mercado.

Outro grande problema apontado por DeLong é que o neoliberalismo inverte a equação necessária para uma boa relação entre mercado e sociedade: como já apontava Polanyi, ao invés de os mercados serem pensados para servir aos homens, são estes que passam a ter que servir ao mercado.

Não obstante essas inconsistências, o pêndulo da história começou a se mover em direção ao neoliberalismo, movimento que se intensificou quando, nos anos 1970, a crise do petróleo triplicou o preço da gasolina em todo mundo, causando inflação e diminuição do crescimento econômico.

Houve um verdadeiro giro neoliberal, capitaneado inicialmente por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, mas que depois foi se tornando senso comum, a ponto de tal pensamento ser mantido por governos supostamente mais progressistas, como Bill Clinton e Barack Obama, nos Estados Unidos, e Tony Blair, no Reino Unido.

Entretanto, segundo DeLong, os resultados do neoliberalismo foram pífios. A onda neoliberal foi até bem sucedida em conter a inflação, embora não em grau maior do que democracias sociais. Porém, o neoliberalismo falhou em relação a todas as demais promessas, incluindo aumento de emprego e salários, aumento de investimento e fortalecimento da classe média. Ao contrário, sua principal consequência foi o corte dos tributos para os ricos, o que gerou aumento exponencial da concentração de renda e da desigualdade, bem como o declínio da classe média.

Não obstante, mesmo o conjunto de efeitos econômicos adversos não impediu que o neoliberalismo se tornasse uma espécie de sabedoria popular (conventional wisdom), o que inclusive explica como mesmo governos democratas puderam ser arrastados para a ortodoxia econômica neoliberal nos Estados Unidos.

Ponto importante da narrativa de DeLong é mostrar que, como o neoliberalismo beneficia os ricos e estes têm maiores microfones para propagar as ideias que lhes interessam, a disputa no campo das ideias pode depender mais dos interesses envolvidos do que do mérito das ideias em si.

É por essa razão que, mesmo sendo uma grande falha do ponto de vista empírico, o neoliberalismo ganhou grande hegemonia no contexto global. Segundo DeLong, até o fim do “grande século”, ainda havia razões para não se prestar tanta atenção aos seus efeitos nefastos diante de um contexto econômico em que não havia virtualmente inflação, a produtividade crescia e o Sul global parecia finalmente estar se aproximando do Norte.

Tudo mudou, entretanto, com a crise de 2008 e os seus efeitos nefastos, em que os governos esqueceram o ensinamento de Keynes que ajudou a superar a Grande Depressão: é nos tempos de crise que o governo precisa gastar dinheiro. Por todas essas razões, a crise de 2008, tanto por suas causas como também por suas consequências, representou a erosão da confiança das pessoas na economia e no próprio sistema político.

Acresce que não houve, por parte das pessoas, a compreensão de que a crise de 2008 foi um resultado direto do neoliberalismo. Os eleitores, do contrário, começaram a procurar outros fatores para culpar, movimento que, segundo DeLong, foi estimulado pela extrema direita que, explorando antigos vieses humanos, foi muito eficaz em apresentar explicações incorretas para o fenômeno.

Não é sem razão que DeLong considera a eleição de Donald Trump um dos marcos do final do “grande século”, quando efetivamente saímos do caminho para a utopia e ele deixou de ser visível, deixando em seu lugar ondas de raiva política e cultural de massas de cidadãos, todos contrariados de diferentes jeitos e por diferentes razões, sobre a falência do sistema que no século 20 funcionara para eles.

Como se pode observar, a análise de DeLong é bastante instigante, por mostrar que, ao contrário do cenário de escassez previsto por Malthus, o “longo século” foi aquele que pode tirar o mundo da pobreza extrema e apresentar um cenário de otimismo, esperança e confiança. Por mais que a humanidade não estivesse correndo rumo à utopia, estava ao menos rastejando – daí o título do livro “slouching towards utopia”.

Entretanto, agora o caminho se perdeu e entramos em uma era de pessimismo, medo e pânico, que muitas vezes nos impede de refletir sobre as reais causas do cenário atual – o fracasso das políticas neoliberais –, ainda mais quando há uma torrente de manipulações intelectuais para desviar a nossa atenção ou apresentar falsas explicações.

Restam, pois, algumas perguntas para a nossa reflexão: por que nos desviamos desse caminho de uma maneira tão abrupta? Que alternativas existem para que possamos voltar ao caminho? O problema do crescimento econômico hoje é uma questão apenas de aumento de riqueza ou essencialmente de distribuição? O problema da distribuição de riqueza é apenas econômico ou, na verdade, político?

Da resposta honesta a essas perguntas depende o futuro não apenas das nossas economias, mas também das nossas democracias.


[1] Basic Books, 2022.

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