Redução da carga tributária para serviços hospitalares

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O tema que trata da redução da base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para prestadores de serviços médicos optantes pelo Lucro Presumido é sempre alvo de bastantes controvérsias.

Isso porque a legislação prevê (artigo 15 §1º, III, a, da Lei 9.249/95) as atividades hospitalares como uma exceção à regra aplicável aos prestadores de serviços, disciplinando que para este tipo de atividade a base de cálculo será determinada mediante a aplicação do percentual de 8% para o IRPJ e de 12% para a CSLL (ao invés de 32% para ambos os tributos).

Como se vê, trata-se de uma redução significativa na carga tributária, razão pela qual existe uma disputa histórica entre a Receita Federal e os contribuintes para gozo dessa benesse legal.

Pois bem. Para que se enquadre na referida exceção à regra, a legislação determina como requisitos necessários, que a entidade preste “serviços hospitalares”, seja “organizada sob a forma de sociedade empresária” e que “atenda às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.

Em razão de recentes decisões da Câmara Superior de Recursos Fiscais, que analisaram a (des)necessidade do registro como sociedade empresária na Junta Comercial para fins de fruição do coeficiente reduzido, o presente artigo voltará a análise na precisa compreensão do termo “organizada sob a forma de sociedade empresária”.

Como se sabe, o Direito Tributário quando se utiliza de institutos de Direito Privado atua como “direito de sobreposição”, uma vez que opera sobre relações jurídicas constituídas sob a égide de normas já reguladas pelo Direito.

Nesse caso, cabe ao Direito Tributário a definição dos efeitos tributários dos acontecimentos regulados pelos demais ramos do Direito, sobretudo do Direito Privado. 

Não sendo, portanto, o conceito de sociedade empresária objeto de conceito autônomo do Direito Tributário, surge uma dependência da pretensão tributária à essa situação jurídica.

Deste modo, resgata-se o que dispõe o caput do art. 966, do Código Civil, cuja redação considera como empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Por sua vez, o seu parágrafo único estabelece que não se se considera empresário quem exerce profissão intelectual, salvo se o seu exercício constituir elemento de empresa.

Como se vê, a organização sob a forma de sociedade empresária depende do exercício profissional de atividade organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços.

Especificamente com relação às sociedades organizadas para a prestação de serviços, o parágrafo único acima mencionado é de suma importância, pois, via de regra, a sociedade formada por pessoas que exercem profissão intelectual, mesmo se contar com auxiliares ou colaboradores, não se considera empresária. São as denominadas sociedades simples.

Diferentemente das sociedades empresárias, as quais necessitam de organização, a atividade desenvolvida pelas sociedades simples depende única e exclusivamente da prestação de serviços por parte de seus próprios sócios. Perceba-se que os custos atrelados às atividades desempenhadas por tais sociedades daqueles produzidos pelas sociedades organizadas.

A respeito do tema, convém mencionar o Enunciado 194 da III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF)[1], segundo o qual os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores de produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida.

O cerne da questão, portanto, reside na análise da atividade desenvolvida pela sociedade, mais especificamente no elemento “organização”. 

No julgamento do Recurso Especial 1.227.240-SP, o ministro relator, Luis Felipe Salomão, confirma tal raciocínio ao asseverar que o que realmente distingue uma sociedade empresária de uma sociedade simples é o objeto social. A sociedade empresária tem por objeto o exercício de empresa (atividade econômica organizada de prestação ou circulação de bens ou serviços); enquanto a sociedade simples tem por objeto o exercício de atividade econômica não empresarial.

Assim, presente o elemento organização (atividade econômica organizada), está-se diante de uma sociedade empresária, de modo que o seu conceito decorre na verdade de sua estrutura organizacional, independente de seu registro.

O tema foi objeto ainda dos Enunciados 198 e 199, aprovados na já mencionada III Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF, segundo os quais a inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para a sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência, e que a inscrição do empresário ou sociedade empresária é requisito delineador de sua regularidade, e não de sua caracterização.

Seguindo essa linha de entendimento, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf (Acórdãos 9101-006.537 e 9101-006.538), em sessão realizada no último dia 5 de abril, concluiu que para o aproveitamento dos coeficientes reduzidos de presunção não seria necessário o registro como sociedade empresária na Junta Comercial, desde que demonstrado o exercício de atividade econômica organizada, o que seria típico das sociedades empresárias e não das sociedades simples.

Este mesmo entendimento foi adotado ainda mais recentemente em julgamento realizado por esta mesma 1ª Turma da Câmara Superior no julgamento dos processos 18088.720162/2012-52 e 18088.720163/2012-05 em sessão de 09/05/2023.

Destaca-se que este colegiado já possuía precedentes nesse sentido, de modo que os processos recém julgados vieram a confirmar um posicionamento já adotado pela última instância administrativa.

No julgamento do Acórdão 9101-006.407[2], em sessão de 7/12/2022, por exemplo, o conselheiro relator já havia alertado para o fato de que nem o art. 966, e nem mesmo o órgão máximo de jurisdição federal infraconstitucional se reportam à sociedade empresária a partir de requisitos formais. A preconcepção desta forma societária se dá a partir do seu elemento subjetivo. E subjetivo no sentido de que, caso desenvolvida a atividade organizada para fins empresariais, a entidade assim será considerada.

Especificamente em relação ao artigo 15, §1º, III, a, da Lei 9.249/1995, o relator confirma o posicionamento anteriormente defendido no sentido que a norma em momento algum exige a verificação de um aspecto formal voltado ao registro da sociedade, voltando-se apenas para a atividade efetivamente desempenhada.

Conclusão semelhante chegou o conselheiro relator do Acórdão 1201-003.409[3], ao analisar no caso concreto que seria impossível que os serviços de “diagnóstico por anatomia patológica e/ou citopatológica” e “diagnóstico por laboratório clínico” ocorressem apenas por meio de seus sócios, haja vista que exigem estrutura física, equipamentos, pessoal e procedimentos submetidos a normas regulatórias que somente podem ocorrer em uma entidade de natureza empresária, afastando o argumento da acusação fiscal de que o contribuinte apenas por ser uma sociedade simples, não teria natureza de sociedade empresária.

Contudo, ainda que esse entendimento tenha precedentes favoráveis, o entendimento da Receita Federal ainda é pela necessidade de que a prestadora de serviços hospitalares seja organizada de fato e de direito como uma sociedade empresária, à vista do teor da mais recente Solução de Consulta Disit/SRRF08 8003/2023 (publicada em 24 de abril de 2023), a qual somente admite o aproveitamento dos coeficientes reduzidos de presunção na hipótese de a sociedade se encontrar organizada, de fato e direito, como sociedade empresária, do que dependente invariavelmente de seu registro em Junta Comercial. 

Perceba-se, portanto, que enquanto para o Carf prevalece a substância sobre a forma, a Receita Federal se apega a um formalismo irrelevante que é facilmente superado quando em confronto com o ordenamento jurídico globalmente considerado.

Ao nosso sentir, o entendimento do órgão fiscalizador viola o próprio objetivo da norma que é reduzir a carga tributária das sociedades organizadas voltadas à prestação de serviços hospitalares, que inevitavelmente suportam um maior custo no desempenho de atividades fundamentais para a sociedade.

Todavia, enquanto não houver uma solução definitiva, seja por meio do legislativo ou do judiciário, a tendência é que a Receita Federal continue autuando os contribuintes em razão da existência de atos administrativos vinculantes baseados em premissa inexistente no Direito Civil, e de uma interpretação equivocada da legislação tributária.


[1] Disponível em https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/EnunciadosAprovados-Jornadas-1345.pdf Acessado em 01/05/2023.

[2] Relator Cons. Gustavo Guimarães da Fonseca, j. 07/12/2022.

[3] Relator Cons. Neudson Cavalcante Albuquerque, j. 11/12/2019.

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