A polêmica em torno da possibilidade de pagamento do piso salarial nacional para a enfermagem é apenas o complemento para o intenso noticiário das últimas semanas sobre saúde suplementar. Planos de saúde queixam-se de resultados operacionais muito ruins. Hospitais privados reclamam dos planos porque estes criam toda sorte de dificuldades para pagar pelos serviços já prestados. Planos denunciam, com razão, redes de fraudes, especialmente nos casos de reembolso. E os consumidores da saúde suplementar aguardam, assustados, pela temporada de reajustes dos já caríssimos planos.
A questão do piso, assim, funciona como o último elo de uma cadeia de problemas que marcam a saúde suplementar. A impossibilidade, para a maioria absoluta dos hospitais brasileiros, de efetuarem o pagamento do piso sem o surgimento de uma fonte adicional de receita deve levar a um indesejável movimento de contenção de investimentos e revisão de custos, em particular com pessoal.
Em um cenário assim, há uma decisão preliminar a ser tomada pelo próprio setor: ou seguimos neste perde-perde, imaginando que os problemas de um segmento se resolverão às custas do outro, dentro da mesma cadeia econômica; ou nos rendemos a uma evidência importante e urgente: a crise é de toda a saúde suplementar e não há solução parcial, benéfica a apenas um dos seus segmentos. Resolve-se o problema geral ou todos perdem.
Comecemos pelo governo e sua relação com a saúde suplementar. A prioridade do governo, deste em particular por seus compromissos políticos, mas de qualquer administração diante do que determina a Constituição, tem que ser o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Até por isso, é preciso que a gestão do Ministério da Saúde reconheça que há uma crise estrutural correndo solta pela saúde suplementar, com consequências ou prejuízos já presentes para o próprio SUS.
Em seus sempre simpáticos discursos, a ministra Nísia Trindade não tem feito referências nem ao setor nem à sua crise. Portanto, aí está um primeiro objetivo para quem quiser enfrentar a questão: envolver o Ministério da Saúde em suas discussões, o que exige afastar um crônico mal-entendido. Quem regula o setor de operadoras de planos é a Agência Nacional de Saúde (ANS) e o dia a dia dessa crise tem que ser discutido com a diretoria da Agência, que tem se mostrado aberta ao diálogo. Mas a crise da saúde suplementar vai além e tem que passar pelo governo como um todo.
Na Agência, cabe centralizar a discussão com seus diretores em um ponto estratégico: estamos diante de uma crise conjuntural causada por fatores temporários? Se a resposta, como pensam alguns, for “sim”, bastaria um pouco de paciência e a liberação de algumas reservas técnicas para que a saúde suplementar saia das dificuldades presentes. Mas este seria um engano terrível: a crise atual fornece todas as evidências de ser estrutural, um esgotamento do modelo que veio até aqui.
Por quê? Porque o modelo travou. Literalmente, travou. Não consegue passar de 50 milhões de beneficiários. Para crescer mais dependeria de mais emprego e muito melhor distribuição de renda no Brasil. Além de empresas financeiramente robustas, capazes de investir fortemente em planos de saúde para seus colaboradores. E, ainda, que a economia, apontando hoje na direção do emprego informal e do empreendedor individual, se ajustasse a um sistema de saúde suplementar saudosista, que sonha com a volta da carteira assinada para que seus detentores sejam automaticamente beneficiários dos planos.
O sistema travou porque tem agora custos que não consegue repassar. Não há quem pague, simples assim. E então, em vez de uma reforma que chame o setor a uma revisão em favor da eficiência, partimos para o mais fácil: cada um, operadoras à frente, tenta salvar seu caixa, já que o sistema não assegura mais a comodidade do esquema “gastar-repassar” que marcou os últimos anos. Instrumentos necessários como as glosas são manejados para o fechamento das contas do mês.
Não fomos capazes de colocar hospitais e operadoras na prevenção da saúde. Preferimos deixar a doença crescer em uma população cada vez mais velha. Não fomos corajosos para abrir um diálogo eficiente com os médicos, profissão cada vez mais fragilizada, e conquistá-los para um trabalho conjunto que respeite a autonomia, defenda a qualidade e a humanidade em medicina, mas também persiga eficiência, combata desperdícios e tenha horror às fraudes.
Fechamos reiteradamente os olhos a fatos mal explicados, setores com falta de transparência — veja-se o caso das órteses e próteses. As empresas contratantes dos planos pouco acompanham os resultados do que contratam e pagam. Os fornecedores de equipamentos, medicamentos e insumos estão, ainda, distanciados dos demais elos da cadeia de saúde. E, em pleno país da urna eletrônica, não conseguimos nos organizar – porque não queremos – para que cada cidadão tenha o seu histórico de saúde.
Facilitamos, então, a cultura do exame pelo exame, onerando desnecessariamente o sistema. Fechamos os olhos para algumas verticalizações que descobriram uma fórmula para cortar custos – abandonar o compromisso com a qualidade e o respeito ao paciente.
São tempos difíceis, para todos. E com direito a um único tipo de esperança: uma profunda e sensata reforma no sistema. As práticas que nos trouxeram até aqui não são mais capazes de nos levar muito adiante.