Tratamento de cão com óleo de cannabis realizado pela UFSC ganha destaque internacional

O tratamento bem-sucedido de um cão com lúpus, atendido pela Clínica Veterinária Escola da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em Curitibanos, virou referência internacional. A cachorrinha Luna começou a ser medicada com óleo de cannabis há quase dois anos e apresentou melhoras surpreendentes.

Cultivo da cannabis na UFSC

O professor Erik Amazonas realiza a colheita da cannabis em aula prática com alunos de medicina veterinária no campus de Curitibanos – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

O relato do caso foi publicado em fevereiro, na plataforma da Frontiers, uma renomada editora internacional de revistas científicas.

O artigo teve orientação dos professores da UFSC Erik Amazonas e Marcy Lancia Pereira, que acompanharam de perto o desenvolvimento da paciente Luna.

“A importância desse caso nessa revista, tão conceituada dentro da medicina veterinária, é que é um trabalho nacional, feito aqui dentro da UFSC”, explicou a professora Marcy.

“É um trabalho pioneiro. A gente não tem relatos de tratamento de lúpus com cannabis, então esse é o primeiro em cão”, garante.

A pet, de 5 anos, é a fiel companheira da tutora Clarice Antunes, engenheira agrônoma em Curitibanos.

Luna recebeu o diagnóstico de LED (lúpus eritematoso discóide) em meados de 2021. A doença autoimune é incurável e o corpo ataca o próprio organismo, causando lesões na pele dos cães.

A pet Luna no colo da tutora Clarice

A tutora Clarice Antunes não imaginava que a cachorrinha Luna teria tanto progresso no tratamento – Foto: Acervo pessoal/Reprodução/ND

“Quando chegou o diagnóstico e nos foi explicado sobre a doença, tínhamos muito medo do que poderia acontecer com a nossa companheirinha”, lembra Clarice.

A engenheira procurou a Clínica Veterinária da UFSC, onde foi recebida pela médica e professora Marcy Pereira.

Antes e depois do tratamento com cannabis

Luna apresentava lesões graves na pele e danos hepáticos que preocupavam a família. No primeiro momento, a cachorra iniciou o tratamento convencional à base de corticoides, mas não respondeu bem à medicação.

O uso prolongado de imunossupressores, comumente prescritos em casos de lúpus, pode causar danos sérios ao fígado e rim dos animais.

Luna ganhou mais de 10 kg em sete meses e sua qualidade de vida diminuiu drasticamente.

“Tudo irritava muito ela, não brincava com o outro cão que temos”, observou a responsável.

Focinho de Luna antes e depois do tratamento com óleo de cannabis

Focinho de Luna antes e depois do tratamento com óleo de cannabis – Foto: Acervo pessoal/Reprodução/ND

“Depois que paramos com o tratamento convencional e iniciamos o tratamento da cannabis e a utilização de uma pomada, ela melhorou totalmente. Diminuiu o peso, voltou a brincar, a ter uma vida normal de cachorro”, relata Clarice.

A engenheira já conhecia um pouco sobre o uso de cannabis medicinal em pets e comentou com a professora Marcy. Diante da tentativa fracassada com os imunossupressores, a médica-veterinária decidiu dar uma chance ao tratamento alternativo.

“Isso mostrou realmente que foi mais efetivo do que o tratamento convencional, não só que pode ser usado. A gente acompanha a paciente há um tempo e, até o momento, não tem tido efeitos adversos, coisa que acontece com as medicações que a gente utiliza para essa doença”, comentou a veterinária.

Alunos de medicina veterinária estudam a cannabis na UFSC

A cannabis modula a resposta imune do organismo em vez de suprimi-la por completo – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

Erik e Marcy começaram a terapia à base de canabinoides em maio de 2022. A dose de Luna foi ajustada gradualmente, de acordo com sua reação, até chegar à dose mínima eficaz. Por se tratar de uma doença incurável, a medicação segue até hoje.

A substância não reduz a resposta imune do organismo a ponto de bloqueá-la.

“Em vez de fazer uma supressão do sistema imunológico, a cannabis faz uma modulação, o que faz com que você tenha o efeito anti-inflamatório, que não causa outros problemas, como os imunossupressores”, esclarece Erik Amazonas.

“É um caso bem interessante porque mostra o caráter colaborativo das associações de cannabis”, comenta o pesquisador.

O óleo foi fornecido a Clarice pela Associação Alternativa de Apoio à Cannabis Medicinal do Brasil, uma organização sem fins lucrativos.

Lesão cutânea no focinho de Luna, cachorra diagnosticada com lúpus

As lesões e a coceira na pele devido à doença afetaram o comportamento do cão, que se irritava muito e não brincava mais – Foto: Acervo pessoal/Reprodução/ND

Logo no início do tratamento, a pet apresentou avanços significativos. Luna perdeu 9 kg em um mês e as lesões cutâneas se atenuaram. A tutora não esperava que hoje, quase dois anos depois, a cachorra estaria tão bem.

“A evolução da doença cessou, a lesão quase não se percebe mais. A Luna se adaptou muito bem ao tratamento, até quando pegamos o frasquinho para dar as gotinhas, ela já fica sentada ou deita, ela é muito querida”, constatou Clarice.

“Ciência na garra”

Apesar do avanço nas pesquisas, estudar cannabis no Brasil ainda é uma batalha. A professora Marcy Pereira considera a legislação o maior entrave para o desenvolvimento do campo científico.

“Está relacionado a questões ideológicas. Não só para aprovação de legislação pertinente, como também para os próprios tutores que ainda associam isso a uma coisa ruim. Pela falta de conhecimento deles, acham que estariam drogando os animais”, analisa a médica.

Cultivo de cannabis para fins veterinários na UFSC

A UFSC foi a primeira universidade do país a conseguir autorização do cultivo da cannabis para fins veterinários – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

A Lei nº 11.343 de 2006, conhecida como lei de drogas, prevê que a União autorize o cultivo das plantas para fins médicos ou de pesquisa. Contudo, a permissão é difícil de conseguir.

“Não tem como fazer ciência. Literalmente, a gente faz ciência na garra”, declara o professor Erik Amazonas.

O pesquisador tentou por quatro anos, até que solicitou um habeas corpus preventivo.

“Eu tive que correr atrás de comprovação de que meu pedido é válido, porque a lei está lá, mas não estavam permitindo. Por isso eu tenho um habeas corpus. Mas se um professor da UFSC em Florianópolis plantar, ele vai preso”, explica.

Assim que conseguiu a autorização judicial para o cultivo de cannabis, em novembro de 2022, Erik fundou na universidade o projeto Podican (Polo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis). Desde então, já foram realizadas cinco colheitas da planta.

O professor Erik Amazonas é responsável pelo cultivo da cannabis na UFSC

O professor e pesquisador Erik Amazonas é responsável pela produção de insumos para a pesquisa de cannabis no Centro de Ciências Rurais da UFSC – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

“A ideia do polo é servir como um habitat de inovação e desenvolvimento para a gente criar parques tecnológicos que possam de fato manipular a planta e desenvolver uma nova cadeia produtiva, ou integrar essa planta na cadeia produtiva que nós temos no país”, descreve Erik.

Além dos fins terapêuticos, a cannabis pode ser útil para diversos setores industriais. A erva serve de alternativa ecológica para a produção de madeira, papel e plástico. O Podican busca levar esse conhecimento às empresas e especialistas de cada área da indústria.

A UFSC é a primeira instituição de ensino superior do Brasil a obter uma medida judicial que autoriza a produção de todos os insumos para a pesquisa da cannabis na medicina veterinária.

Cultivo de cannabis na UFSC

A UFSC está promovendo pesquisas inovadoras, não apenas para uso terapêutico veterinário, mas também explorando outras aplicações – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

A universidade também foi a primeira do país a incluir o estudo da cannabis e do sistema endocanabinóide em cursos da área da saúde. Erik Amazonas ministra a disciplina de Endocanabiologia desde 2018, no campus de Curitibanos.

O sistema endocanabinóide diz respeito aos receptores e compostos da cannabis encontrados naturalmente no corpo humano e animal.

O futuro da cannabis

A publicação do artigo sobre o caso de Luna na revista Frontiers abre portas para novas descobertas. A publicação de grande alcance e prestígio no meio científico torna as pesquisas realizadas na UFSC uma referência global.

Os pesquisadores não têm conhecimento de outros relatos no mundo sobre o uso de óleo de cannabis para tratamento de lúpus em animais. A cachorrinha Luna foi, portanto, uma pioneira.

Campus da UFSC em Curitibanos

Campus da universidade em Curitibanos – Foto: Henrique Almeida/Agecom/ND

“A gente fala muito que uma pesquisa que você faz e não publica, só engaveta, não serviu para nada. Ela precisa servir para a comunidade científica se debruçar sobre ela e avançar nesse tema”, opina o professor Erik.

Ele defende que o Brasil já é referência nas pesquisas em terapia com cannabis, tanto na medicina humana quanto veterinária.

A ciência brasileira ganhou o respeito de atores globais como Estados Unidos, União Europeia e América Latina.

“Mesmo não sendo legalizado, a gente tem uma conexão muito forte internacional. O Brasil tem talvez uma das maiores redes de comunicação de médicos e veterinários para atuação com cannabis no mundo”, afirma.

O estudo publicado pelos professores da UFSC na revista Frontiers pode influenciar novos avanços no uso veterinário de derivados da cannabis – Foto: Ana Krug/Gabriel Olivo/CCR-UFSC/Reprodução/ND

Apesar dos obstáculos legais, o Podican segue cultivando e estudando a planta no Centro de Ciências Rurais da UFSC.

Os docentes e estudantes se empenham em criar um ecossistema capaz de gerar desenvolvimento tecnológico para Santa Catarina e para o Brasil.

A médica-veterinária Marcy Pereira acredita que o trabalho desenvolvido na universidade pode inspirar novos experimentos na área: “Com certeza esse resultado vai influenciar pesquisas, primeiro pelo alcance da revista, pelo impacto que ela tem”.

“É uma revista de muita confiança no meio científico e vai encorajar quem está iniciando com cannabis. Isso vai ser levado de uma forma mais natural para aqueles que ainda têm resistência a essa terapia”, conclui a pesquisadora.

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