Esportes de volta na mira do antitruste?

Recentemente, fatos que tomaram as notícias, como o envolvimento de jogadores de futebol na manipulação de resultados para supostamente fraudar sistemas de apostas, levaram muitos a se perguntar: como deve a regulação da concorrência se aplicar aos mercados esportivos?

Por trás dessa discussão, está um mercado bilionário, notadamente concentrado e, em verdade, muito pouco regulado. Pesquisadores já vem sugerindo a necessidade de haver um órgão regulador do futebol no país, na esteira de iniciativas internacionais como o Fair Game Project, da Inglaterra, que tem conduzido ao desenvolvimento de uma regulação específica para este mercado. Nesse contexto, estão também os movimentos recentes que apontam para uma nova regulamentação dos jogos de azar no Brasil, que deve afetar particularmente as apostas esportivas, especialmente para jogos de futebol.

Embora em um país como o Brasil seja difícil falar de qualquer tema esportivo sem dedicar especial atenção ao futebol, fato é que há diferentes ligas, organizações e confederações com regras específicas e dinâmicas mercadológicas, como explica o episódio do podcast Vantagem Auferida sobre esse debate. De fato, logo se vê que o debate é amplo e complexo e nenhuma iniciativa regulatória conseguirá, com facilidade, abarcar as especificidades das diferentes modalidades.

No que diz respeito à específica intersecção entre os negócios do mundo esportivo e o direito concorrencial não é tópico novo. Desde o começo do século passado, cortes e autoridades de defesa da concorrência começaram a se debruçar sobre as peculiaridades da aplicação da lei antitruste sobre o setor. E, durante as décadas, o tema se expandiu e complexificou: há vários potenciais desdobramentos das relações que se estabelecem nesse setor e seus potenciais riscos concorrenciais. Desde as negociações sobre os direitos de transmissão de jogos e a mídia e propaganda envolvida, que levaram a disputas em vários países; passando pela constituição de novas ligas esportivas; às restrições à contratação e remuneração de atletas (o chamado fair play financeiro ou break even requirement); além de restrições a patrocínios, um tema que ganhou proeminência com os diversos processos envolvendo atletas universitários nos Estados Unidos; assim como a recente reabertura de um processo antitruste pela 2nd U.S. Circuit Court of Appeals que discute suposto conluio entre a Fifa e a U.S. Soccer Federation para proibir que ligas e clubes estrangeiros de sediar jogos oficiais no país.

Em todos esses debates, o que se evidencia são as múltiplas faces da concorrência: entre jogadores (por remuneração, exposição e patrocínios), entre times (dentro de determinados campeonatos), entre ligas (por contratos de mídia e tempo exposição nas transmissões), entre emissoras, em seus diferentes formatos, pelos direitos de transmitir jogos e campeonatos e por aí vai.

O Comitê de Concorrência da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), referência internacional para política de defesa da concorrência, já se debruçou sobre este tema, tendo organizado dois de seus Roundtables on Competition Policy: primeiro em 1996; depois em 2010. Agora, o Fórum de Concorrência da América Latina e Caribe da OCDE receberá um evento sobre o tema em setembro deste ano, com possíveis atualizações nas diretrizes e concepções da organização.

No documento de 2010, a OCDE destacou a potencial sensibilidade do setor, reconhecendo os vários desdobramentos que indicamos acima. As questões suscitadas perpassavam os arranjos cooperativos entre concorrentes com risco de coordenação anticompetitiva (por exemplo, para organização de ligas e regras aplicáveis a competições esportivas).

A regulação privada das condições de participação e existência de negociações coletivas nesses mercados (por exemplo, salários máximos pagos a jogadores) também pode suscitar sensibilidades, relacionadas à discriminação ou exclusão de participantes. A relação com os mercados de transmissão de jogos em televisão aberta ou a cabo também é sensível, levando a discussões sobre condições de negociação (em bloco ou individualmente), assim como potenciais efeitos decorrentes da exclusividade. Além disso, a relação entre ligas profissionais e categorias de base poderia gerar subsídios cruzados e incentivos à discriminação da concorrência. Por fim, a definição “econômica” do papel exercido por atletas também surte efeitos sobre o mercado de trabalho.

No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) enfrentou o tema especialmente sob a ótica da negociação de direitos de transmissão. O famoso caso do “Clube dos 13”, que terminou em um acordo entre Cade e a associação que reunia os principais clubes de futebol.

Discussão similar também já apareceu em análises de atos de concentração econômica, sendo o mais relevante o caso Disney/Fox que afetou o mercado de canais esportivos básicos em TV por assinatura, dada a união entre ESPN e Fox Sports. No início de 2019, o Cade aprovou a operação, sob a condição de desinvestimento da última marca e sublicenciamento dos correlatos direitos de transição. A despeito de tentativas, as partes foram incapazes de encontrar um comprador, levando o Cade à necessidade de rever sua decisão no ano seguinte, celebrando um novo acordo e determinando novas condições – dessa vez comportamentais – para aprovação da operação. Um dos aspectos evidenciado por este caso foi justamente a peculiaridade da dinâmica competitiva nesse mercado.

Mais recentemente, o Cade voltou a analisar o tema no contexto da investigação de supostas condutas anticompetitivas da Globo que estariam gerando prejuízos a outras emissoras e limitando seu acesso ao mercado. Esse último caso discutiu especialmente os potenciais efeitos à concorrência da chamada Medida Provisória do Mandante (MP 994/2020), depois de caducada, sucedida pela Lei 14.205/2021, que atribui os direitos de transmissão ou reprodução das partidas esportivas ao clube mandante do jogo, permitindo que emissora interessada em transmitir não precisaria negociar com os dois times envolvidos, mas apenas com o mandante. Antes da entrada em vigor da nova previsão legal, o Departamento de Estudos Econômicos do Cade já havia se posicionado sobre os potenciais benefícios à concorrência pela transmissão dos jogos de se multiplicar as possibilidades de negociação pelos clubes.

Em sendo sua vigência ainda muito recente, seus concretos efeitos sobre a concorrência no mercado são ainda incertos. Esse novo regime se soma a outras mudanças relevantes que o setor tem testemunhado. Há pouco tempo, o Cade discutia a adequação do novo regime jurídico da Sociedade Anônima de Futebol (SAF) à legislação brasileira de defesa da concorrência, especialmente no contexto do controle de concentrações econômicas; o que poderá desbocar para a organização econômica de times em outras modalidades esportivas. Além disso, a criação da Libra, uma liga de futebol integrada pelos clubes das séries A e B, que cuidará da organização do campeonato brasileiro e da negociação dos direitos de transmissão, promete adicionar uma nova dinâmica econômica para o esporte mais popular do Brasil, cujos impactos concorrenciais ainda serão conhecidos nos próximos anos.

Mas não são apenas as mudanças no setor que podem afetar as discussões sobre o tema. Como indicado acima, a despeito de suas muito relevantes especificidades, as intersecções entre o mundo dos esportes e do direito da concorrência estão relacionadas a recortes mais amplos: limites a arranjos cooperativos entre concorrentes; disrupção e abertura em mercados regulados (e.g., a discussão sobre direitos de transmissão e pressão competitiva de serviços de streamings e outras plataformas online); e efeitos competitivos sobre mercados de trabalho.

Todos estes temas têm chamado atenção da autoridade brasileira de defesa da concorrência em mercados muito distintos do setor esportivo. Os limites de acordos lícitos entre concorrentes estão sendo discutidos em casos dos setores farmacêutico, automobilístico e agrícola. As alterações a modelos regulatórios baseados em monopólios regulados estão sendo discutidas nos mercados de óleo e gás, telecomunicações e energia elétrica.

E preocupações concorrenciais sobre mercados de trabalho também estão no radar da autoridade, inclusive em investigações em andamento no mercado farmacêutico. Os apontamentos, teorias de dano e ponderações entre efeitos anticompetitivos e eficiências econômicas não podem ser esquecidos quando se discutirem os efeitos concorrenciais sobre o mercado futebolístico ou esportivo de maneira geral. Para além disso, as várias faces da concorrência nesses mercados precisarão ser adequadamente consideradas e ponderadas. Os desafios são certamente muito grandes.

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