Vulnerabilidade econômica e processo – parte 1

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Não é de hoje que o custo do processo representa uma preocupação na história da humanidade. Em Roma, Constantino consagrou o patrocínio jurídico a quem não possuísse meios de fortuna, disposição posteriormente incorporada ao Código Justiniano.[1]

Do período pós-revolução francesa data, igualmente, a primeira lei a estabelecer a gratuidade universal do serviço estatal de prestação jurisdicional, abolindo a cobrança de taxas judiciárias e o modelo venal de magistratura (les juges rendront gratuitement la justice).[2]

Séculos depois, o famoso discurso de Roscoe Pound sobre as “Causas da Insatisfação Popular com a Administração do Justiça” argumentou que os altos custos judiciários causavam o indesejado efeito de transformar os tribunais em organizações de serviço para os ricos.[3]

Posteriormente, o tema foi globalmente reapresentado por Cappelletti e Garth no propalado Projeto Florença de 1978, identificando os autores, a par de outras barreiras, a necessidade de superação do custo do processo como meio para se alcançar um acesso efetivo à justiça.[4]

Passados quarenta anos do prestigiado trabalho, veio à tona projeto de lei complementar elaborado pelo Grupo de Trabalho designado pelo CNJ (Portaria 71/2019), o qual pretendia estabelecer normas gerais ao sistema de cobrança das custas dos serviços forenses e o controle de sua arrecadação.

O PL foi objeto de audiência pública e passou pelo escrutínio de Comissão de Estudos designada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), cujas contribuições científicas podem ser acessadas em texto publicado pelo Jota (acessar aqui).[5]

Agora, a temática volta à ribalta a partir da afetação do Tema Repetitivo 1.178 perante a Corte Especial do STJ, objetivando-se definir “se é legítima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98 e 99, § 2º, do CPC”.

A presente série de artigos inaugurada nessa coluna pretende dialogar com a questão da vulnerabilidade econômica no processo, revisitando o direito à gratuidade de custas.

Mais do que isso, pretende chamar a atenção para alguns riscos decorrentes do julgamento do presente Tema Repetitivo, especialmente às camadas mais necessitadas da população.

Em proêmio, conforme já debatido neste espaço (acessar aqui),[6] imperioso constatar que o direito à gratuidade visa superar a existência de uma vulnerabilidade específica no âmbito do processo: a vulnerabilidade socioeconômica.

Está-se, portanto, diante de espécie de vulnerabilidade vinculada à desigual distribuição de bens e recursos sociais, que demandam medidas redistributivas para sua reversão.

O tratamento dessa vulnerabilidade objetiva a construção de um acesso à justiça mais igualitário, remediando obstáculos ligados à pobreza e à desigualdade de renda em matéria de reinvindicação de direitos.

Posta essa premissa, importante recobrar que, como todo serviço público estatal, a prestação da tutela jurisdicional carece de recursos financeiros para sua implementação e desenvolvimento. As custas judiciárias correspondem, assim, ao tributo cobrado em decorrência da atividade de distribuição da justiça.

Ao contrário dos impostos, que não exigem uma atividade estatal específica relacionada ao contribuinte, as custas judiciárias possuem como fato gerador a prestação de um serviço público específico e divisível, tratando-se de modalidade de taxa nos termos do art. 77 do Código Tributário Nacional.

Em regra, portanto, aquele que ingressa com um processo judicial, movendo a estrutura da máquina do Poder Judiciário, deve arcar com as custas responsáveis pelas despesas de processamento e andamento processual.[7]

Costuma-se ainda apontar que as custas judiciárias consubstanciam gênero do qual seriam espécies as custas em sentido estrito, as taxas judiciárias e os emolumentos.

As custas em sentido estrito englobariam o financiamento do serviço prestado por servidores da justiça (escrivães, oficiais de justiça, contadores etc.), enquanto a taxa judiciária remuneraria a atuação dos magistrados.[8] Já os emolumentos financiariam o serviço e as atividades extrajudiciais delegadas pelo Estado.

Acerca dessa temática, o plenário do STF já teve a oportunidade de referendar a natureza jurídica de taxa às custas judiciárias, uma vez instituírem “serviço público específico e divisível, cuja base de cálculo é o valor da atividade estatal diferida diretamente ao contribuinte” (RE’s nº 249.003, 249.277 e 284.729).

Importante precisar, para fins terminológicos, que as “custas judiciárias” não se confundem com as “custas processuais. Esta consubstancia gênero do qual seriam espécies as despesas processuais e os honorários advocatícios.

Esta é a lição de Dinamarco, para quem o “custo do processo é a designação generalizada de todos os itens entre os quais se distribuem os recursos financeiros a serem dispendidos no processo”.[9]

Segundo o artigo 84 do CPC/2015, as despesas processuais incluem “custas dos atos do processo, a indenização de viagem, a remuneração do assistente técnico e a diária de testemunha”.

Logo, as despesas processuais, além de incluírem a taxa devida ao Estado pelo serviço judiciário (taxa judiciária), alcançam todo e qualquer valor dispendido em termos de diligências e remuneração dos auxiliares do juízo (custas em sentido estrito).

Por sua vez, os honorários advocatícios se referem à remuneração devida aos profissionais que prestam o serviço de assistência jurídica. São verbas pagas pelo exercício da advocacia.

Dividem-se os honorários em contratuais e sucumbenciais. Os contratuais são regidos pelas regras de Direito Privado (art. 653, CC/2002) e expressam a legítima liberdade de contratação do cliente em relação ao profissional jurídico por ele constituído.

Já os sucumbenciais são aqueles decorrentes de eventual derrota no processo, os quais, segundo a sistemática brasileira, são devidos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora (art. 85, CPC).

A rigor, portanto, apenas os honorários sucumbenciais estariam inseridos nas “custas processuais”, uma vez que os honorários contratuais restariam abrangidos pela liberdade de contratar, fenômeno que se situa fora do processo.

O fato de não integrar as “custas processuais” não significa, evidentemente, que o custo dos honorários contratuais não influencie a litigância. Ao contrário, trata-se de importante fator econômico a ser considerado nas políticas de acesso à justiça, especialmente nos casos de hipossuficiência financeira da parte que não possui condições de arcar com a contratação de um advogado.

Daí inclusive a importância da assistência jurídica integral e gratuita insculpida no art. 5º, inc. LXXIV, da CF/1988, bem como do serviço de orientação jurídica e defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos prestado pela Defensoria Pública (art. 134)

Interessante observar que as custas extraprocessuais, embora não integrem o conceito de custas judiciárias, também são relevantes ao debate e podem gerar obstáculos ao acesso à justiça.

Maior exemplo disso, talvez, seja a situação atual de pessoas transgênero, que não conseguem exercer o seu já reconhecido direito à retificação extrajudicial do registro civil em virtude dos altos emolumentos cobrados pelos Cartórios de Registro Civil (acessar aqui).[10]

Igualmente, há custos extrajudiciais que incidem sobre os processos autocompositivos, gerados pela necessidade de aquisição de informações, confecção de propostas e contrapropostas, atividades de negociação, remuneração de mediador ou conciliador etc. A depender do quantum considerado, estes custos podem muito bem inviabilizar um acordo.

Até aqui analisamos o custo econômico do acesso à justiça, o qual, conforme salientado, envolve a discussão sobre custas judiciárias (taxas e custas strictu sensu), custas processuais (despesas processuais e honorários advocatícios) e custas extraprocessuais (emolumentos e custo do processo autocompositivo).

Mas a dimensão econômica não é a única a permear o presente debate. Sistematizando o raciocínio proposto, é possível cogitar de outras modalidades de custos que impactam o acesso à justiça.

De um lado, existem os custos psicossociais do acesso. Em relação à população hipossuficiente, esses custos podem ser traduzidos na chamada “rota crítica da litigância”, a qual envolve o tempo dispendido para acessar os serviços de assistência jurídica, a distância geográfica dos canais de atendimento, a renda comprometida com gastos de transporte e alimentação etc.

Grupos específicos em situação de vulnerabilidade também experimentam custos psicossociais ao recorrerem ao Poder Judiciário, dado que o procedimento e os canais de acesso podem, de per si, constituir obstáculos ao acesso à justiça. Basta imaginar a falta de acessibilidade às pessoas com deficiência e as barreiras enfrentadas pelas pessoas em situação de rua.

Existem, ademais, outros custos não pecuniários no acesso à justiça. Casos clássicos são o strepitus judicii no processo penal, a revitimização de mulheres em processos de violência doméstica e familiar e o desgaste emocional causado por conflitos civis envolvendo relações continuadas.

Para o cidadão comum, mesmo conflitos cotidianos podem gerar custos psicossociais. É o caso da ansiedade gerada por testemunhar em público, dos antagonismos com a parte adversa gerados no curso do processo ou da diminuição da estima social se o litigante for percebido como um causador de problemas.

Doutro giro, uma outra categoria de custo pouco discutida no cenário brasileiro envolve os custos políticos do não acesso. Assim, se é verdade que somos um país com muitos processos, é igualmente verdade que convivemos com uma quantidade maciça de violação de direitos (praticada inclusive por repeat players conhecidos da justiça brasileira).

A questão é que essas necessidades jurídicas não atendidas impactam a democracia e o desenvolvimento sustentável, contribuindo para o aumento da pobreza, reforçando a exclusão social e prejudicando o crescimento econômico.

O não atendimento de problemas jurídicos pode, ainda, acarretar o chamado efeito cascata em relação a outros problemas sociais. Nesse sentido, um problema não solucionado em relação à renda pode evoluir para consequências envolvendo saúde, ruptura de laços familiares, desemprego ou falta de moradia, gerando gastos públicos ainda maiores em outras áreas, também custeadas pelo tecido social.

Em síntese, existe um custo político do não acesso, litigiosidade contida esta que gera efeitos sociais negativos, como há muito percebeu Kazuo Watanabe.

Todos esses custos, que não integram evidentemente às custas judiciárias, influenciam a decisão dos cidadãos em demandar ou não perante o Poder Judiciário, impactando a política pública de acesso à justiça.

Considerá-los, portanto, é medida que se impõe, se o que se busca é uma reforma sustentável do modelo de custas adotado no Brasil e uma melhoria nos indicadores de litigância. É preciso melhorar a qualidade do acesso (especialmente aos mais necessitados), condição de possibilidade para índices sustentáveis de desenvolvimento econômico e social.

Na próxima coluna, tratarei do direito à gratuidade, procurando demonstrar sua evolução histórica e regulamentação legal no contexto brasileiro. Até breve.


[1] É o que registra o Digesto, Livro I, Título XVI, “De officio Proconsulis et legati”. Nesse sentido, conferir: MAGUIRE, J. M. Poverty and Civil Litigation. In: Harvard Law Review, Vol.  XXXVI, (1922-23), p. 361-404.

[2] CAPPELLETTI, Mauro. Pobreza e Justiça. In: Processo, ideologias e sociedade. Vol. I. Trad. Elício de Cresci Sobrinho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 194.

[3] POUND, Roscoe. The Causes of Popular Dissatisfaction with the Administration of Justice, Address Before the Annual Convention of the American Bar Association, Aug./29, 1906.

[4] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, trad. Ellen Gracie Northfleet, 2002.

[5] Sobre o tema, vale a pena conferir o parecer elaborado pela Comissão de Estudos do IBDP e publicado pelo Jota: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-nova-lei-de-custas-judiciarias-e-o-acesso-a-justica-28112019

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/entre-igualdade-diferenca-fundamentos-protecao-juridica-vulnerabilidade-27052021

[7] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnósticos das custas processuais praticadas nos Tribunais. Departamento de Pesquisas Judiciárias, 2019, p. 10.

[8] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnósticos das custas processuais praticadas nos Tribunais. Departamento de Pesquisas Judiciárias, 2019, p. 11.

[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. II. 7ª e. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 742-743.

[10] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/direito-a-retificacao-de-nome-e-genero-de-pessoas-trans-20032023

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