A Lei da Ficha Limpa entre Chicos e Franciscos

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O indeferimento da candidatura e consequente cassação do mandato do então deputado federal e ex-coordenador da Operação Lava Jato Deltan Dallagnol (Podemos-PR) ganhou o noticiário nos últimos dias.

Baseado na Lei da Ficha Limpa, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por unanimidade, entendeu que o agora ex-parlamentar teria burlado a norma ao se desincompatibilizar (ou seja, deixar o cargo que ocupava no Ministério Público), antes que diversos procedimentos administrativos instaurados por conta de sua conduta como chefe da Lava Jato pudessem se tornar processos administrativos disciplinares (o tal PAD), que pudessem redundar, em último caso, na perda do cargo ou aposentadoria compulsória, o que o tornaria inelegível.

Teria, portanto, conforme o voto do relator, burlado a norma ao, sem justificativa aparente, afastar-se meses antes do prazo exigido pela lei eleitoral, o que teria evidenciado uma manobra para contornar a vedação legal.

Vozes a favor e contra a decisão (e a favor e contra o lavajatista Dallagnol), surgiram na mídia e nas redes sociais: de um lado, a tese da vingança dos poderosos que foram caçados por Deltan enquanto membro do MP; de outro, a defesa da legalidade e correção da decisão, que teria desvendado uma malandragem malfeita e a reprimido adequadamente, com base na lei que, ao menos em tese, o ex-parlamentar zelava em defender nos seus tempos de Ministério Público.

O problema é que no Fla-Flu que se tornou o debate público no Brasil, o argumento leva muito mais em consideração para quem (pessoa ou grupo de pessoas) é destinada aquela determinada decisão do que sua efetiva legalidade e constitucionalidade. Discute-se esse tema da mesma forma como se debatem os erros do VAR e da arbitragem no futebol brasileiro: se a interpretação de um lance favorece o time X ou prejudica o time Y, seu rival, os torcedores daquele defenderão a decisão do árbitro a qualquer custo, até que aquela mesma interpretação seja desfavorável ao seu clube do coração, momento a partir do qual, sem qualquer pudor, adotarão um discurso diametralmente oposto ao anterior. É o tal “clubismo”.

A jurisprudência do TSE, até então, era no sentido de que as causas de inelegibilidade deveriam ser interpretadas sempre de forma restritiva, ou seja, sem qualquer ampliação de seu escopo ou alcance. Significa dizer que a conduta imputada ao agente político deveria se amoldar com perfeição ao tipo normativo para que fosse possível a cassação de um mandato ou o indeferimento de uma candidatura, sem qualquer ajuste hermenêutico. Salvo melhor juízo, não foi o caso do julgamento do registro de candidatura de Deltan, no qual foi necessária uma enorme ginástica interpretativa para que a conduta descrita incidisse na tipificação aplicada.

A interpretação restritiva das normas de caráter penal (no sentido de normas que aplicam penas, não somente aquelas de caráter político criminal) é um princípio básico de Direito, pelo qual a lei penal não pode ser interpretada extensivamente em prejuízo do réu, sendo necessária a existência de lei anterior que defina claramente tanto o crime quanto a pena. O mesmo princípio deve se aplicar às normas que trazem inelegibilidade de caráter penal, em respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. E tanto pior, votaram em prejuízo de Dallagnol nomes que haviam aparecido em delações premiadas conduzidas por ele, sem qualquer intenção de se declararem suspeitos, sem contar os réus de centenas de processos que comemoraram a decisão.

Embora a elegibilidade, assim como todo e qualquer direito em nosso ordenamento, não seja absoluta, podendo sofrer limitações (vide a declaração de constitucionalidade pelo STF da própria Lei da Ficha Limpa), estas devem estar em estrita consonância com o princípio da proporcionalidade, que demanda adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Trocando em miúdos, a possibilidade de restrição à capacidade eleitoral passiva (possibilidade de ser votado em uma eleição), deve ser uma exceção, sob pena de violação dos princípios da democracia e da soberania popular, especialmente considerando que o próprio TSE já fixou o caráter de garantia fundamental dos direitos políticos de todo cidadão.

Assim, frente às causas de inelegibilidade previstas na Lei da Ficha Limpa, há uma necessidade de se adotar uma postura interpretativa que busque equilibrar a preservação da moralidade e probidade no processo eleitoral com a garantia dos direitos fundamentais, em especial o direito à capacidade eleitoral passiva.

Tal equilíbrio não se constrói pela simples leitura do texto legal, mas por uma compreensão dialética da norma, que considere as diversas dimensões dos direitos em jogo. No caso da Lei da Ficha Limpa, não se trata apenas de ponderar a probidade administrativa contra a capacidade eleitoral passiva, mas de compreender como ambas se inserem no contexto do Estado democrático de Direito.

Não se pode perder de vista, de outro prisma, que o voto popular possui uma função legitimadora fundamental na democracia. A exclusão indiscriminada de candidatos legitimamente eleitos pode levar a um esvaziamento dessa função, na medida em que retira do eleitor a possibilidade de escolher (bem ou mal), livremente seus representantes. Não se pode admitir que, em nome de uma pretensa moralidade, seja sacrificada a democracia; que o voto popular seja submetido a posterior escrutínio de terceiros (estes não eleitos), que validariam ou não a escolha do povo ao seu exclusivo critério.

Repetiu-se à exaustão que Deltan provou do próprio veneno, tendo em vista que sua conduta enquanto membro do MP foi inúmeras vezes questionada, especialmente após vir à tona diversas conversas pouco republicanas no âmbito da Vaza Jato, as quais nunca foram devidamente explicadas ou energicamente negadas. Para esses, o ocorrido seria algo como dizer que o pau que bateu em Chico, agora bateu em Francisco. Mas não é por mero revanchismo que se fortalece uma democracia.

Fato é que um novo precedente se criou. Não podemos esquecer que decisões como a discutida nessas breves linhas extrapolam o âmbito das partes que litigam no processo, e se tornam paradigma para casos futuros, quando todos esses (e muitos outros) argumentos serão postos à prova e rediscutidos, podendo ser validados ou não. Mas algo que não se pode perder de vista é que cenários de insegurança jurídica afetam em muito menor grau os poderosos, até porque geralmente são eles quem criam tais cenários; afeta, sim, a grande maioria de pessoas comuns, que hoje estão diante de um contexto jurídico e amanhã terão outro totalmente diferente e hostil, sem nada poder fazer quanto a isso a não ser se submeter.

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