É legítimo usar critérios objetivos na aferição da gratuidade de justiça?

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A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) irá decidir, pelo rito dos recursos repetitivos, se é legítima a adoção de critérios objetivos para apreciação de pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural[1].

O recurso afetado teve origem em demanda ajuizada contra o INSS por pessoa natural, em que a gratuidade de justiça foi negada ao autor em função de ele auferir renda mensal superior a três salários mínimos. A decisão foi agravada e reformada integralmente pelo TRF2. O INSS apresentou recurso especial sustentando que o critério objetivo de renda é utilizado para formulação e execução de políticas públicas, sendo, portanto, legítima sua adoção para se decidir sobre pedidos de gratuidade de justiça. Afirmou não haver impedimento legal para que se utilize de critérios objetivos para decidir sobre a gratuidade de justiça. Por fim, argumentou haver risco à isonomia e à segurança jurídica, porquanto haveria, no Tribunal de origem, ao menos cinco formas de decidir o assunto, sendo três delas a partir de critérios objetivos: por declaração de hipossuficiência; pelo critério objetivo da Resolução 85/2014-CSAGU; pelo critério objetivo com o limite mínimo de isenção do IRPF; pelo critério objetivo do valor do salário mínimo ideal fixado pelo Dieese, multiplicado pelo fator 4x; e à luz do caso concreto.

O que o STJ vai decidir – e que nos interessa investigar – é se a adoção de critérios objetivos isoladamente é uma forma legítima para fundamentar a decisão sobre o deferimento de gratuidade de justiça. Em outras palavras, se critérios objetivos são suficientes por si só para se chegar à conclusão de que o interessado tem o direito à gratuidade de justiça ou não.

Destacamos dois argumentos pelos quais não devem ser adotados critérios numérico-matemáticos de maneira exclusiva para deferimento ou não da gratuidade de justiça.

O Código de Processo Civil dispõe em seu art. 98, que a gratuidade da justiça deve ser concedida a pessoa natural ou jurídica “com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios”. A expressão legal “insuficiência de recursos” pressupõe uma análise casuística dos recursos da parte e do impacto do custeio da demanda no orçamento do jurisdicionado. Vejamos duas situações representativas desse argumento.

Na primeira, o autor possui renda mensal de 10 salários-mínimos, não possui patrimônio e gasta 20% de sua renda com medicamentos de uso contínuo e indispensável. Ele postula contra o Estado o fornecimento de uma terapia específica que não é fornecida pelo SUS e nem é substituível por qualquer outra disponível na rede pública, conforme atestado por relatório médico. No caso, a terapia tem um custo mensal vultoso, de 50 salários-mínimos, perfazendo um valor da causa de 600 salários-mínimos. Considerando as custas iniciais de 1% do valor da causa, o autor deverá pagar R$ 7.812 para ajuizar a ação, o que corresponde a 60% de sua renda. Caso seja sucumbente, poderá ter de arcar com honorários de 10% ao Estado, correspondente a R$ 78.120, o que equivale a seis vezes sua renda mensal.

Na segunda situação, a autora aufere renda mensal de um salário-mínimo e é responsável por duas crianças. Ela postula o ressarcimento causado pelo prejuízo decorrente da falta de funcionamento de uma geladeira de R$ 2.500, que comprou com recursos reunidos ao longo do último ano, em bicos realizados aos finais de semana. A demanda foi julgada improcedente pelo juizado especial e cabe recurso inominado. Se considerarmos a taxa inicial de 1% do valor da causa e a de 4% para o recurso, teremos uma previsão de dispêndio de R$ 125 somente de custas, o que corresponde a quase 10% do rendimento mensal da autora.

Em ambos os casos, apesar da disparidade de renda dos autores, dos valores das demandas e do percentual de renda que seria comprometida pelo pagamento das custas e despesas, estamos diante de pessoas que não possuem recursos suficientes para arcar com as custas do processo, o que demonstra a inadequação dos critérios objetivos que desconsideram os aspectos individuais de cada caso.

É claro que se poderia argumentar que as custas estão abaixo da renda mensal dos requerentes e que, por isso, o pagamento seria viável. Contudo, a Constituição não exige o sacrifício de outros valores – como a manutenção da vida, no primeiro exemplo; ou o cuidado com todas as necessidades dos filhos, no segundo exemplo –, para que o acesso ao Judiciário seja garantido.

Corroborando com a necessidade de avaliação casuística da gratuidade, o art. 99, §6°, do Código de Processo Civil dispõe ser este um direito pessoal, não extensível ao litisconsorte ou sucessor do interessado.

O próprio Superior Tribunal de Justiça adota esse entendimento ao julgar que nas “ações ajuizadas por menor, em que pese a existência da figura do representante legal no processo, o pedido de concessão de gratuidade da justiça deve ser examinado sob o prisma do menor, que é parte do processo”[2] e a de que “a revogação do benefício de assistência judiciária gratuita deve estar fundamentada em fato novo que altere a condição de hipossuficiência da parte”[3].

Por outro lado, o INSS sustenta que, se o TRF2 vem decidindo de ao menos cinco formas diferentes o mesmo assunto, então a adoção de um critério objetivo promoveria maior isonomia entre os jurisdicionados. Ledo engano.

Há muito o princípio da igualdade foi interpretado para se descolar da concepção liberal tradicional de igualdade formal – tratamento igual perante a lei (igualdade formal) – para se tornar vetor de redução de desigualdades e reconhecimento de diferenças – tratamento igual na lei (igualdade material)[4].

Esse critério da igualdade material foi largamente utilizado por ocasião dos trabalhos que resultaram na elaboração das Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça, traçadas durante a XIV Conferência Judicial Ibero-americana com o intuito de permitir o acesso à justiça de pessoas em situação de vulnerabilidade, como por questões de idade, de deficiência, culturais, de pobreza, de gênero, de situação migratória, de privação de liberdade e outros[5].

As Regras de Brasília partem da premissa de que não basta garantir o acesso formal à justiça: é necessário garantir que as desvantagens de grupos vulnerabilizados – que enfrentam maiores obstáculos para acessar seus direitos – sejam compensadas por medidas ativas que permitam sua superação. Assim, a adoção de um critério de igualdade formal para tomada da decisão sobre a gratuidade de justiça não promove a isonomia, tampouco se conecta com a atual principiologia do processo civil constitucional[6].

Aliás, o próprio STJ vem decidindo que é inadequada “a utilização de critérios exclusivamente objetivos para a concessão de benefício da gratuidade da justiça, devendo ser efetuada avaliação concreta da possibilidade econômica de a parte postulante arcar com os ônus processuais”[7] Ademais, ao decidir sobre a utilização da faixa do imposto de renda para aferição da gratuidade de justiça, o Tribunal, reiteradamente, considera que esse critério não pode ser tomado de maneira exclusiva para se decidir sobre o pedido de isenção de custas[8].

Assim, a aferição do direito, para ser adequada, deve ser cuidadosa e casuística, o que não é compatível com uma sistemática exclusivamente numérica, tal como está sendo proposto.

A proposta de adoção exclusiva de critérios objetivos para o deferimento da gratuidade de justiça viola a lei e o princípio da igualdade, criando risco de esvaziamento do conteúdo do direito ao acesso à justiça. Em obra clássica, Cappelletti e Garth lembram que o acesso à justiça é o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos[9]. Não podemos assim perder de vista que a gratuidade de justiça é um direito que visa garantir o acesso à justiça, e não a gratuidade em si[10].


[1] Tema 1178. Foram objeto de afetação no mesmo julgamento, ainda, os REsp 1988697/RJ e REsp 1988686/RJ. Por fim, a Corte Especial determinou o sobrestamento de todos os recursos especiais ou agravos em recursos especiais em segunda instância e/ou no STJ fundados em idêntica questão de direito.

[2]  Por todos: REsp 1807216/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/02/2020, DJe 06/02/2020.

[3] Por todos: AgInt no AREsp 1564850/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe 04/03/2020.

[4] Cf. André de Carvalho Ramos, “Curso de Direito Humanos”, 8ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2021, págs. 675 e ss.

[5] Disponível aqui: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf. Participaram da elaboração das regras a Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos, a Associação Inter americana de Defensores Públicos, a Federação Ibero-americana de Ombudsman e a União Ibero-americana de Colégios e Agrupamentos de Advogados

[6] Veja-se as disposições dos arts. 1º e 8º do Código de Processo Civil:  Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil , observando-se as disposições deste Código; Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

[7] Por todos: EDcl no REsp 1803554/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 12/05/2020.

[8] Por todos: REsp 1846232/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/12/2019, DJe 19/12/2019.

[9] Cappelletti, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, pág. 12.

[10] Conclusão essa que o Supremo Tribunal Federal chegou no RE 249.003 ED, j. 9/12/2015, que julgou a recepção pela Constituição da República do já revogado art. 12 da Lei 1.060/1950.

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