Entre Kafka e Minority Report

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Nas últimas semanas, um tema tem dominado as pautas tributárias: os impactos dos incentivos fiscais de ICMS na apuração do lucro real e o que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar o tema 1.182. Nas conversas com empresários, se pode perceber a sensação de incerteza e ansiedade que paira quanto ao alcance e efeitos do julgamento do STJ e principalmente quanto às recentes “intimações” da Receita Federal. 

Como amplamente divulgado, em 26 de abril, a 1ª Seção do STJ julgou o tema 1.182, e reafirmou o seu entendimento de  que o crédito presumido de ICMS não pode ser objeto de tributação pelo IRPJ e pela CSLL, independentemente de qualquer exigência legal. Na ocasião, o STJ também firmou entendimento de que é possível excluir os demais benefícios fiscais de ICMS (como redução de base de cálculo, diminuição de alíquota, isenção, diferimento, entre outros) da base de cálculo do IRPJ/CSLL, desde que atendidos os requisitos previstos no artigo 30 da Lei 12.973/2014. 

Passados poucos dias, antes mesmo da publicação do acórdão, a Receita Federal transmitiu uma mensagem para cerca de 5.000 contribuintes, os quais, segundo ela, apresentariam sinais de redução imprópria dos valores de IRPJ e CSLL, devido a possíveis exclusões de benefícios fiscais de ICMS das respectivas bases tributáveis. A comunicação ressaltou a oportunidade de autorregularização até o dia 31 de julho, além da necessidade de revisão e apresentação de documentos específicos com a intenção de “assegurar que as exclusões mencionadas estejam em conformidade com a legislação em vigor”

Soma-se a isso, o posicionamento do governo federal de que a tese fazendária sobre as exclusões dos incentivos fiscais da apuração do imposto de renda teria prevalecido no STJ e está instalado um cenário de extrema segurança e preocupação entre os contribuintes. Importante ressaltar que essa “vitória” da Receita Federal é bastante discutível, visto que, ao que tudo indica, o STJ reconheceu que as empresas poderão sim excluir as subvenções de ICMS da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, desde que observem as condições impostas pela lei, como a correta escrituração fiscal e a restrição à distribuição de resultados dessas benefícios aos sócios. 

E aqui me parece que está a grande mudança de cenário. Se o direito tributário brasileiro já foi muito apropriadamente chamado de “manicômio” por Alfredo Augusto Becker, o tema das subvenções de investimento e as correspondências da Receita Federal sobre o julgamento inauguram uma nova fase: a da “distopia tributária”. Um mundo onde  “O processo” de Kafka se encontra com o “Minority Report”, e onde a notificação da Receita Federal se assemelha mais a uma premonição futurista do que a uma carta de aviso.

Assim como Josef K. da obra de Kafka, os contribuintes estão sendo intimados a cumprir uma decisão ainda não publicada, de um processo que não são parte e baseada em critérios ainda desconhecidos. Já em “Minority Report” temos uma sociedade em que a polícia desenvolve uma tecnologia capaz de prever e impedir homicídios pouco antes de serem praticados. Nesse cenário, John Anderton luta contra um sistema de prevenção de crimes que o acusa de um futuro assassinato que ele não pretende cometer. Tal como no filme, em um exercício premonitório, a Receita busca adivinhar ou condicionar os requisitos que constarão no acórdão do STJ ainda não publicado para intimar (ou intimidar?) diversos contribuintes que excluíram as subvenções fiscais da sua tributação.

A verdadeira questão é: como pode alguém ser convidado a regularizar uma situação com base em uma decisão que ainda não foi publicada e segundos critérios ainda incertos? Qual a razão da Receita Federal de acelerar essa autorregularização sem que o STJ tenha publicizado a palavra final, definitiva e segura sobre o tema? 

Em tom não menos acusatório, o comunicado da Receita Federal pontua que mesmo os contribuintes que acreditam estar em “conformidade com a legislação e de acordo com o julgamento do STJ” devem providenciar os esclarecimentos e documentos necessários antes do início dos processos de fiscalização. 

Quais os indícios de irregularidades que incorreram as empresas para terem que prestar esclarecimentos antes de qualquer procedimento fiscalizatório? Nenhum, além de ter indicado no seus livros fiscais a dedução das subvenções da apuração do lucro real.

Dentre o universo de empresas compelidas à autorregularização, temos casos de contribuinte que possuem ação transitada em julgado garantindo a não incidência  do imposto de renda sobre os incentivos fiscais; há empresas que excluíram o crédito presumido de ICMS que, segundo a tese firmada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, não fica submetido às regras do art. 30 da Lei 12.973/14; há empresas que excluíram as subvenções de ICMS procedendo rigorosamente com a escrituração dos valores nas contas de reserva de incentivos e sem fazer qualquer distribuição dos valores aos sócios. 

São todos casos de contribuintes que agiram em estrita legalidade, mas ainda assim estão sendo intimidados a pagar por um tributo indevido, ou mesmo prestar esclarecimentos sobre uma suposta irregularidade que não cometeram e sem saber o que irá determinar sua “inocência” em um crime que não ocorreu. 

O desafio atual do tema das subvenções de investimento, portanto, reside na incerteza da acusação e na consequente impossibilidade de provar sua inocência, um elemento comum tanto em “O processo” quanto em “Minority Report”. 

Todavia, esse não é o momento para pânico, mas para cautela. Deve-se aguardar a publicação do acórdão do tema 1.182 pelo STJ. Ainda, é de extrema importância que as empresas tributadas pelo lucro real e que usufruam de incentivos de ICMS revisem suas escriturações fiscais. Isso permitirá a exclusão segura das subvenções de ICMS da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, devendo ser observado a mensuração e o registro adequado dos valores, a demonstração contábil das subvenções, a restrição à distribuição de resultados dessas subvenções aos sócios e a demonstração de que os valores subvencionados foram utilizados para a manutenção do empreendimento econômico. 

Parafraseando Kafka, alguém devia ter caluniado Josef K. e os contribuintes brasileiros, pois foram detidos uma manhã, sem terem feito mal algum.

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