O cashback do IBS e o orçamento público

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Um dos temas mais discutidos, dentre os tantos que tocam a reforma tributária, é como conciliar justiça fiscal e eficiência na alocação de recursos. Em poucas palavras, como tornar menos regressiva a tributação sobre o consumo sem criar benefícios fiscais que sejam aproveitados, em maior intensidade, justamente pelos setores mais ricos da sociedade? A questão, como logo se intui, é complexa e sua resposta exige a consideração de múltiplos aspectos.

Os projetos de reforma em curso propõem substituir a atual sistemática constitucional, fundada no princípio da seletividade tributária, por um sistema em que o novo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) é cobrado de maneira o máximo possível uniforme sobre todos os produtos, sendo o tributo posteriormente devolvido à camada menos favorecida da população. Fazem-no dessa maneira por ser uma decorrência natural de algumas características desejadas num bom IVA: base ampla de incidência e uniformidade de alíquota.

Há duas maneiras de enfrentar a regressividade inerente aos impostos estruturados como um IVA: i) mitigar a uniformidade da alíquota para que determinados bens e serviços sejam isentos ou tenham reduzida sua carga fiscal, algo dentro da atual lógica do ICMS e IPI; ii) valer-se de mecanismos de devolução – ou cashback, como vem sendo chamado – por meio do qual uma parte do tributo é devolvida à determinada parcela da população, abrangendo mais ou menos pessoas, ou até mesmo incluindo a totalidade dos cidadãos, a depender dos critérios adotados.

Uma parte relevante da literatura defende o segundo modelo, argumentando que a “quebra” da uniformidade do IVA opera efeitos negativos, dentre os quais excesso de complexidade do sistema, incentivo ao litígio, perda de eficiência e falta de foco dos incentivos, uma vez que eles seriam mais usufruídos pelos extratos mais ricos da população. Posto de outra forma, o IBS perderia suas virtudes e viraria um ICMS.

Os dois projetos propõem as seguintes estruturas para a devolução do IBS:

  • PEC 45: A União cobrará um adicional de alíquota, cujo produto será exclusivamente aplicado, nos termos da lei, em programas de devolução, sendo vedados sua retenção e contingenciamento;[1]
  • PEC 110: A lei complementar poderá prever a devolução total ou parcial às famílias de baixa renda do imposto dos estados, Distrito Federal e municípios incidente sobre suas aquisições de bens e serviços.[2]

Os projetos têm como característica comum a instituição de uma devolução da arrecadação do IBS à determinada parcela da população nos termos de uma futura lei complementar. As PECs diferem substancialmente em alguns aspectos, mas possuem em comum um elemento central: a política pública relativa à mitigação da regressividade da tributação sobre o consumo deixará a incidência da norma tributária e passará a um momento posterior, quando, após a arrecadação, é promovida a devolução do imposto de acordo com os parâmetros fixados em lei complementar.

O que seria, em termos jurídicos, a devolução do IBS? Essa é uma questão com profunda relevância concreta. Ao deixar o momento de incidência da norma tributária e, em seu lugar, utilizar um mecanismo de devolução do imposto estar-se-á diante de uma despesa pública, classificada pelos artigos 12 e 13 da Lei 4.320/1964 como despesa corrente da espécie transferência corrente. As transferências correntes são despesas públicas que se caracterizam por serem periódicas e não guardarem relação com contraprestações diretas em bens ou serviços.

Há grandes diferenças entre a devolução de tributos como pagamento indevido ou em razão do seu regime de apuração, a exemplo da restituição do Imposto de Renda, e a proposta de devolução do IBS. Na primeira hipótese, a devolução é uma despesa púbica desde logo criada em razão do paralelismo entre o recolhimento original do tributo e a norma jurídica autorizativa de sua devolução. Não é necessária, nessa hipótese, uma nova lei que institua a despesa pública, nem tampouco especial autorização orçamentária: devolve-se o tributo porque houve pagamento a maior ou em razão de regime de apuração. É o caso das restituições e ressarcimentos realizados por meio do mecanismo do PER/DCOMP.

Na devolução do IBS não há, em princípio, relação entre o contribuinte e o beneficiado pela devolução, pois o estorno do tributo não decorre de pagamento indevido ou de regime de apuração. Ao contrário: busca-se manter-se íntegra a incidência do imposto, retirando-se qualquer correlação entre os atos de recolhimento do tributo e sua devolução.

Em consequência, tornam-se necessárias a edição de uma lei que institua a política pública, uma vez que ela não se confunde com a futura lei complementar, e, principalmente, a autorização orçamentária anual, que informará o quanto de recursos públicos poderão ser utilizados nessa despesa pública. Há, aqui, um evidente sopesamento entre eficiência na alocação de recursos versus garantia da existência efetiva da política pública através da suficiência do seu custeio.

A PEC 45 avançou em algumas garantias, em relação à PEC 110, ao estabelecer que o adicional de alíquota cobrado pela União será exclusivamente aplicado em programas de devolução, vedados sua retenção e contingenciamento. Essas regras, porém, não afastam as complexidades inerentes às despesas públicas, uma vez que:

  • o adicional de alíquota será cobrado pela União para mitigar a regressividade da tributação sobre o consumo relativa aos três níveis federativos (União, estados e municípios) cuja alíquotas parciais formam a alíquota integral do IBS. Assim, uma única alíquota adicional, aplicada nacionalmente, fará face à regressividade decorrente de três alíquotas distintas, cujo somatório varia em razão das unidades federativas consideradas. Não há correlação necessária, portanto, entre a alíquota adicional e a arrecadação do IBS;
  • a despeito de vedar retenções e contingenciamentos, a destinação dos recursos arrecadados pelo adicional do IBS ainda depende de previsão orçamentária, apenas a partir de quando a proibição operará efeitos. Só é possível, afinal, contingenciar ou deixar de contingenciar o que está dentro da programação orçamentária, conforme o artigo 9º da LRF. Assim, recursos arrecadados podem deixar de integrar o orçamento destinado ao programa de cashback em um determinado exercício. Eles não podem ser utilizados em outras finalidades, é verdade, mas podem ser “empoçados” para futura aplicação, conforme o artigo 8º, parágrafo único, da LRF;
  • mesmo podendo se classificar como despesa obrigatória, o cashback, por se tratar de uma despesa pública, sujeita-se aos mecanismos de controle do gasto público, incluindo o novo arcabouço fiscal em processo de aprovação pelo Congresso Nacional.

Pode-se argumentar que essas características do cashback são positivas e conferem mais eficiência em comparação à política fundada no princípio da seletividade. É possível que assim seja, porém a eficiência de uma política pública decorre fundamentalmente da concretização de suas finalidades, para as quais o custeio suficiente é uma questão central. Simplificar o IBS, despindo-o das complexidades próprias de uma política tributária, exige o enfrentamento de outras tantas complexidades surgidas na ponta orçamentária. Ambas são, afinal, questões de igual relevância social e constitucional.


[1] Cf. Art. 152-A. § 2º, do Substitutivo Final da Comissão Mista. https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=6335&codcol=2334 acesso em 21 de maio de 2023.

[2] Cf. Art. 156-A. § 8º, do Substitutivo do Relator   https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9090455&ts=1654087982620&disposition=inline acesso em 21 de maio de 2023.

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