Sereias, elfos e futebol: o racismo está em todo lugar

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Já faz algum tempo, a Disney vem produzindo versões filmadas de suas animações de maior sucesso. Fez isso com Mogli, Cinderela, Mulan e muitos outros clássicos. Recentemente estreou no Brasil a transposição de A Pequena Sereia, sucesso dos anos 1990.

A história de Ariel, a sereia que faz um pacto com uma bruxa para transformar-se em mulher e ir atrás de seu amor em terra firme, já é uma referência no mundo da animação. A adaptação faz todo sentido comercial e deveria estar livre de problemas, exceto por um detalhe: no desenho, Ariel é uma menina branca de cabelos ruivos; no filme, é interpretada por Halle Bailey, uma jovem negra.

A polêmica se instalou nos Estados Unidos antes mesmo da estreia da película. Comentários racistas surgiram na internet[1], contestando uma sereia de pele negra e atacando a produção.

Situação parecida aconteceu com a nova série Os Anéis do Poder, baseada na famosa trilogia O Senhor dos Anéis. Na produção lançada em 2022, um dos personagens é um elfo chamado Arondir, vivido por Ismael Cruz Córdova, um homem negro. Novamente, parte do público estadunidense lançou ofensas racistas ao ator e criticou o seriado.

O argumento utilizado pelos racistas para sustentar as críticas seria o da fidelidade às obras originais. Pouco importa que sereias ou elfos, como produtos da imaginação, possam assumir quaisquer tons de pele, já que sequer existem de verdade.

Essa “pureza” demandada dos personagens é da mesma espécie que alimenta a absurda ideia de hierarquia entre raças, com os brancos no topo e os negros na base da escada social.

A reclamação contra sereias e elfos negros consiste em uma deslegitimação não apenas dos personagens, mas das etnias que eles representam. Há aí uma tentativa de apagamento das pessoas pretas e pardas, para vedar-lhes o acesso a posições de destaque em nossa sociedade.

Essa mesma interdição ao protagonismo negro estimulou, há pouco tempo, os torcedores do time espanhol Valencia a xingarem de “macaco” o atacante do Real Madrid, o jogador Vinícius Júnior.

Vini Jr., como é mais conhecido, é um negro retinto e um dos maiores talentos do futebol mundial na atualidade. Ídolo do time madrilenho, o jogador já passou por repetidos ataques nos anos em que vem atuando nos gramados espanhóis.

Nos três casos, de Ariel, Arondir e Vini Jr., os racistas foram contestados por outras parcelas da população. Os fãs defenderam os atores que interpretam os personagens, e parte da torcida defendeu o jogador brasileiro.

Chama a atenção a atitude valorosa do craque do Real Madrid. Quando atacado, não se intimidou. Foi expulso injustamente do jogo – punição posteriormente anulada pela federação espanhola–, insurgindo-se com contundência e firmeza em suas redes sociais. Sugeriu que poderia deixar de jogar em terras hispânicas, questionando a inércia das autoridades futebolísticas do país, que deixam intocado o racismo naquele campeonato.

Recebeu apoio da mídia mundial, da torcida merengue e dos brasileiros. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, o apoiaram. Ela inclusive pediu providências às autoridades espanholas. Algumas medidas, ainda um tanto tímidas, estão sendo tomadas.

Vale lembrar que o jogador brasileiro foi vítima de ofensas naquele país em pelo menos uma dezena de ocasiões diferentes[2]. A naturalização da violência racial, seja no futebol, seja em qualquer seara da vida humana, não pode persistir.

É necessário sublinhar que o xingamento racista é uma forma de discurso de ódio, que, com muita frequência, se torna semente para a eclosão da violência física. Não só contra os jogadores, mas contra todas as pessoas de ascendência africana.

Vini Jr. vem de uma origem humilde em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Seu talento excepcional o levou às categorias de base do Flamengo e de lá para o Real Madrid. Seu posicionamento antirracista é fundamental para lançar luz ao preconceito racial que ainda grassa em todos os lugares.

Preconceito que varre outros “Vinícius Juniores” aqui no Brasil, jovens negros e talentosos, mas para os quais não temos olhado com o cuidado devido. O genocídio dessa população é uma realidade nacional, com agentes do Estado contribuindo de forma decisiva para ou encarcerar ou exterminar pessoas pretas e pardas.

Em apoio a esse jovem ídolo, a pátria de chuteiras apagou as luzes do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Homenagem e apoio mais do que devidos a um campeão da causa antirracista.

No entanto, é importantíssimo que acendamos os holofotes para os casos de racismo reiterado que temos em nosso país. Precisamos iluminar a situação das pessoas mais vulneráveis, que sofrem com a violência, com a exclusão e com a falta de recursos para viver dignamente em nossas cidades. Não por acaso, a maioria dessas pessoas é negra.

Os avanços de que necessitamos no Brasil precisam ir além da salvaguarda das vidas negras, com a inclusão de pretos e pardos no debate dos principais problemas do país, como bem lembrou o escritor José Eduardo Agualusa em coluna no jornal O Globo no último dia 27 de maio. Atualmente, a voz dessas pessoas só é ouvida quando o assunto é racismo.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, por meio de seu Grupo de Trabalho Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, vem enfrentando esse mal, que relega as pessoas a uma condição indigna de vida, preponderantemente em razão do tom de sua pele.

Buscamos fomentar a desconstrução do ambiente racista vigente no país. Um ambiente fértil para um parlamentar do Congresso Nacional criticar, sem qualquer constrangimento, a divulgação do caso de Vini Jr., afirmando que a cobertura da imprensa revitimizava o jogador. Uma posição claramente equivocada.

Apesar de respeitarmos opiniões divergentes, não podemos continuar a manter o preconceito racial nas sombras. Ele deve ser apontado e execrado por todos, dada sua essência hedionda. Ocultá-lo é perpetuá-lo. Desvelá-lo é desconstruí-lo.

Em 24 de maio, a PFDC recebeu correspondência do Defensor do Povo de Espanha, responsável por ouvir reclamações referentes a violações de direitos humanos naquele país. A carta repudiava os atos contra Vini Jr. e destacava a coleta de informações junto às autoridades desportivas ibéricas sobre as providências por elas tomadas.

Em resposta, a PFDC manifestou sua preocupação com o caso, especialmente quanto ao potencial de o discurso de ódio transformar-se em violência física de fato, dirigida aos jogadores negros e também às pessoas de etnias não europeias. A PFDC também se colocou à disposição para cooperar com a defensoria espanhola, dada a experiência brasileira no combate ao racismo. Solicitou, por fim, que fosse mantida informada e atualizada quanto ao andamento do caso.

Somente com a defesa intransigente da igualdade racial – seja ela na ficção, nos campos de futebol ou em nosso dia a dia – poderemos assegurar que as pessoas comuns, pretas e pardas, sejam vistas pela sociedade e protegidas contra o flagelo do racismo. Dignidade humana não tem cor e deve ser sempre respeitada.


[1] https://www.bbc.com/portuguese/geral-62921625. Acesso em 26/05/2023.

[2] https://www.bbc.com/portuguese/articles/c729gypd570o. Acesso em 26/05/2023.

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