Austrália, paradigma de boa governança

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A Austrália é reconhecida como um dos países de melhor administração pública no mundo. No InCISE (International Civil Service Effectiveness Index), compilado em 2019 pela Blavatnik School of Government e o Institute of Government, do Reino Unido, a administração pública australiana aparecia em quinto lugar, entre as mais efetivas do mundo.

Este artigo propõe mostrar a trajetória da Austrália para atingir um nível de excelência no serviço público. É interessante analisarmos, de forma mais minuciosa, a construção da governança australiana, pois esta pode ser uma fonte rica de aprendizado para o nosso país.

Tanto o Brasil quanto a Austrália possuem dimensões continentais, mas nós ainda temos um longo caminho pela frente quando se fala em excelência no serviço público.

Antecedentes

Uma ruptura importante, na trajetória da Administração Pública australiana, ocorreu em 1976, com a publicação do Relatório Coombs. Encomendado a graduados políticos, servidores públicos e sindicalistas, o relatório propôs mudanças que visavam aumentar a eficiência e a efetividade, ampliar a responsividade e melhorar o engajamento com os cidadãos. O diagnóstico apontava que as estruturas da Administração Pública australiana eram muito rígidas e hierárquicas e que o recrutamento e a promoção de servidores não estavam suficientemente ancorados em princípios de mérito.

A Austrália foi então uma precursora na introdução do gerencialismo na Administração Pública. É certo que sua participação na Commonwealth a aproximou do debate que também se dava nos demais países de influência britânica – Canadá, Nova Zelândia e o próprio Reino Unido –, mas o fato é que, nos anos 1980, os governos trabalhistas promoveram uma série de mudanças, inspiradas no Relatório Coombs. Vale lembrar que o contexto de crise da economia australiana, que vinha perdendo relevância em relação a seus vizinhos do Sudeste Asiático, impulsionou e deu legitimidade a essas reformas promovidas pelos trabalhistas.

Após esse período, seguiram-se outros estudos e diretrizes para o aperfeiçoamento e atualização da Administração Pública australiana. Edwards, Halligan, Horrigan e Nicoll (2012) assim sintetizaram essas mudanças:

Fases de reformas (1980-2000)

Dimensão da reforma Gerencialismo Nova Gestão Pública Governança integrada
Conceito central Gestão (baseado no setor privado) Mercado Gestão do desempenho para demonstrar resultados
Foco da reforma no núcleo central do serviço público Melhoria da gestão financeira Terceirização

 

Governo integrado
Foco da reforma na administração indireta Criação de companhias estatais
  • Privatização
  • Público-privado
Uhrig Review (2003) e racionalização de órgãos públicos
Tendências gerais Mudança de paradigma para a gestão por resultados Devolução e desagregação Integração e fortalecimento do centro
Tendências público-privadas Importação de conceitos e técnicas do setor privado
  • Exportação de ativos e funções
  • Importação de ideias de governança corporativa do setor privado
Renovação do setor público como o centro da governança
Engajamento público Reavaliação da relação e do custo da provisão pública Prestação de serviços aos clientes Política pública e prestação dos serviços centradas no cidadão

Fonte: Edwards, Halligan, Horrigan e Nicoll (2012)

Nessas três décadas foram sendo elaborados novos documentos que em parte reforçavam os objetivos anteriormente perseguidos e em parte traziam novas contribuições. Assim, a Uhrig Review (2002) elaborou um quadro de referência de princípios e arranjos, sobretudo para organizações que se relacionavam com o setor privado.

Em 2010, um novo documento orientador foi publicado pelo governo em exercício (Kevin Rudd): Ahead of the Game. Ele trouxe 28 recomendações sobre nove áreas de reforma e quatro temas, a saber:

  1. As necessidades dos cidadãos;
  2. Liderança e direção estratégica;
  3. Capacidade dos servidores públicos;
  4. Alta eficiência operacional.

“O teor geral do Ahead of the Game era o de afinar, aumentar traços sistêmicos do serviço público australiano. A governança corporativa e a ênfase na Nova Gestão Pública das reformas anteriores… não eram proeminentes. Em vez disso, novos temas como mecanismo de transparência, engajamento, integração, colaboração e responsabilidade compartilhada se somaram aos temas tradicionais da eficiência, desregulação e valores do setor público.” (Edwards, Halligan, Horrigan e Nicoll, 2012)

Segundo esses mesmos autores, a recepção do documento foi moderada, em parte explicada pela falta de uma narrativa coerente que integrasse temas tão diversos. Ainda assim, alguns sucessos foram alcançados: o retorno de uma institucionalidade para liderar o processo de reformas: APSC/Australian Public Service Commission; essa, por sua vez, realizou “capability reviews” (avaliações organizacionais) em várias agências e organizações, bem como uma revisão sistêmica do “senior civil service” (a gestão dos postos de alta direção).

Ainda como consequência do Ahead of the Game, o Ministério das Finanças se dedicou a realizar uma racionalização no organograma do governo, reduzindo o número de pequenas agências, simplificando o número de categorias de organizações.

O momento presente: o Thodey Independent Review

Em 2018, o governo conservador encomendou uma nova revisão da Administração Pública australiana. Os termos de referência indicavam que uma equipe de especialistas oriundas dos setores público e privado, com experiência nacional e internacional, deveria fazer uma avaliação independente para permitir que a Administração Pública fosse capaz de sustentar a Austrália em seus principais desafios:

  • “Estimulando a inovação e a produtividade da economia;
  • Oferecendo aconselhamento de alta qualidade em políticas públicas, regulação, programas e serviços;
  • Assegurando que interesses domésticos, estrangeiros, comerciais e de segurança estejam coordenados e bem gerenciados;
  • Melhorando a experiência dos cidadãos com o governo e prestar serviços cujos resultados sejam justos;
  • Adquirindo e mantendo as competências necessárias e a capacidade para realizar suas responsabilidades”. (Thodey Independent Review)

O relatório resultou de um amplo processo de consultas e estudos: mais de 400 audiências foram realizadas, mais de 11 mil indivíduos foram entrevistados. O documento contém 39 recomendações, agrupadas em seis temas:

  1. Uma nova visão e propósito;
  2. Maior impacto através de parcerias genuínas;
  3. Melhores serviços através de dados e tecnologia digital;
  4. Capacidade fortalecida e investimento em pessoas;
  5. Organizações dinâmicas e responsivas;
  6. Líderes empoderados.

A implementação das recomendações vem se dando através de múltiplas iniciativas. Essas são acompanhadas pela APS Reform Office, situado no gabinete do primeiro-ministro, que atua em parceria com múltiplos órgãos públicos, indivíduos e empresas.

No campo específico da gestão dos servidores públicos, pode-se verificar a implementação da agenda Thodey através do State of the Service, relatório anual entregue ao parlamento prestando contas do estado do serviço civil.

Em seu site a comissão que faz o acompanhamento da implementação da agenda Thodey destaca que suas prioridades são:

  • integridade e visão comum, com vistas a aumentar a confiança dos cidadãos e da sociedade no governo;
  • parcerias para maior impacto: colaboração com estados e territórios para a busca de prioridades nacionais; trabalho com comunidades para soluções locais;
  • dados e tecnologia digital em busca de melhores decisões baseadas em análise de dados; elaboração de um plano geral de TICs para todo o governo e a substituição de antigos sistemas;
  • pessoas e empregador modelo: estudo das funções passíveis de automação; gestão do desempenho: cultura de alto rendimento; modelo de profissões e carreiras; referências para a mobilidade; estratégia para a força de trabalho; estratégia de aprendizagem e desenvolvimento; estratégias para a diversidade; ferramentas para a gestão de talentos;
  • organizações dinâmicas e responsivas: estruturas mais flexíveis, portfolio clusters referentes às prioridades de governo; equipes “ágeis”; escalas de remuneração comuns a todas as organizações; abordagem estratégica às compras e contratações;
  • empoderar lideranças: tornar claros os papeis e responsabilidades; aperfeiçoar a gestão de desempenho; tornar os processos de recrutamento e desligamento mais robustos.

O relatório Thodey também sugeriu um cronograma, cujas ações se desdobram em quatro anos; deu indicações ademais das condições para a realização dessa mudança:

  • Liderança e coordenação efetivas;
  • Fortalecimento das capacidades e medindo o progresso;
  • Investimento suficiente e sustentável;
  • Mudança cultural.

Blavatnik School of Government & Institute of Government (2019) “InCISE / International Civil Service Effectiveness Index, UK Civil Service, OPEN SOCIETY Foundations

@Commonwealth of Australia, Department of the Prime Minister and Cabinet (2019) “Our Public Service, our Future. Independent Review of the Australian Public Service”

Edwards, Halligan, Horrigan e Nicoll (2012) “Public Sector Governance in Australia”, The Australia and New Zealand School of Government, ANU. E.Press

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