De volta ao passado: a redução de IPI e PIS/Cofins como política tributária

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No clássico filme De volta para o futuro, Marty McFly vai parar em 1955, interferindo no encontro de seus pais e colocando em risco sua própria existência. Na vida real, no entanto, apesar de não dispormos de um DeLorean para voltar no tempo, já assistimos esse filme, mas o governo insiste em retomar as mesmas práticas do passado acreditando que vai ter um resultado atual diferente.

Trata-se da recente divulgação da redução dos tributos IPI e PIS/Cofins para veículos, sob o argumento retórico de se buscar baratear a aquisição de carros no Brasil com preço final de até R$ 120 mil[1]. Até aí, não vemos problema algum, pois é consabida a alta carga tributária incidente sobre o importante segmento produtivo do país. A questão é que, novamente, o país irá discriminar a tributação entre veículos nacionais e importados, prestigiando com desoneração fiscal apenas aqueles produzidos nacionalmente.

A história não é nova. No segundo ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), a pasta fazendária patrocinou a MP 563, de 2012, que instituía o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da cadeia Produtiva, ou Inovar Auto[2]. O programa que concedia créditos de IPI para fabricantes que realizassem etapas do ciclo produtivo automotivo em solo nacional teve efeitos imediatos de curto prazo, promovendo ampla vinda de montadoras estrangeiras, tudo por conta da carga tributária discriminatória.

Logicamente, pouco mais de um ano após a criação do programa, o Brasil foi notificado pela União Europeia e pelo Japão na Organização Mundial do Comércio (OMC)[3] para consultas em relação ao Inovar Auto. O pleito virou disputa com resultado desfavorável ao Brasil. Um lembrança amarga no desfecho do mandato do então presidente Michel Temer (MDB).

O governo então buscou repaginar o programa para se adequar às recomendações da OMC, criando, ainda em 2018, o Rota 2030[4], que tenta se dissociar do seu anterior por meio de deduções de Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). O subsídio fiscal agora fica vinculado à inserção de critérios teoricamente[5] justificáveis como rotulagem veicular, eficiência energética, tecnologias assistivas à direção, gastos com pesquisa e tecnologia.

No entanto, apesar do discurso ambiental empacotado no último programa, o cenário do setor mudou bastante desde o lançamento do Rota 2030. A pandemia da Covid-19 seguida de uma crise mundial de desabastecimento de semicondutores[6] fez com que o preço médio dos veículos no Brasil praticamente dobrasse de valor nos últimos seis anos, enquanto a inflação acumulada do mesmo período foi de quase 60%[7]. O apelo então é novamente buscar discriminação tributária entre importados e nacionais, diretamente na tributação sobre o consumo.

Caso a anunciada política tributária automotiva seja levada adiante, teremos novamente a violação da isonomia tributária, ou seja, novo ferimento justamente do princípio que motivou a criação da PIS/Pasep-Importação e Cofins-Importação por meio da MP 164, de 2004[8] (posteriormente  convertida na Lei 10.865/2004) para garantir neutralidade tributária[9].

Sejam as novas medidas efetivadas por meio de substituição tributária, diferimentos ou reduções, tudo se converte no final do dia em benefício econômico aproveitado somente pelo produto nacional, dando-se trato menos favorável ao importador[10].

A medida é uma ponte direta ao lamento da disputa automotiva desfavorável ao Brasil na OMC. A sequência, aliás, parece se tratar de um déjà vu de Marty McFly, que vê a história se repetir num futuro alternativo nada promissor. A semelhança da vida real com a ficção é que agora o protagonista possui a chance de não repetir os mesmos erros do passado. Se não o fizer, não haverá uma máquina do tempo que lhe dê uma segunda chance.


[1] AUTOESPORTE. Carros produzidos no Mercosul e no México não poderão receber desconto nos impostos. Publicado em 26.05.2023. Disponível em: https://autoesporte.globo.com/seu-bolso/noticia/2023/05/carros-produzidos-no-mercosul-e-no-mexico-nao-poderao-receber-desconto-nos-impostos.ghtml#AUTOESPORTE-POST-TOP-6H-item,rec,eb718a16-577f-41f9-9e1d-87c6e0cb6245. Acesso em: 29.05.2023.

[2] BRASIL. PLANALTO. Lei nº 12.715, de 18 de setembro de 2012, art. 41: “As empresas habilitadas ao Inovar-Auto poderão apurar crédito presumido de IPI, com base nos dispêndios realizados no País em cada mês-calendário […]” § 3º As empresas de que trata o inciso III do § 2º do art. 40, habilitadas ao Inovar-Auto, poderão, ainda, apurar crédito presumido do IPI relativamente aos veículos por elas importados, mediante a aplicação de percentual estabelecido pelo Poder Executivo sobre a base de cálculo do IPI na saída do estabelecimento importador”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12715.htm. Acesso em: 29.05.2023.

[3] WORLD TRADE ORGANIZATION. Brazil — Certain Measures Concerning Taxation and Charges (DS 472 e 497). Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds472_e.htm. Acesso em: 29.05.2023.

[4] BRASIL. Lei nº 13.755, de 10 de dezembro de 2018, art. 11: “A pessoa jurídica habilitada no Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística poderá deduzir do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) devidos o valor correspondente à aplicação da alíquota e adicional do IRPJ e da alíquota da CSLL sobre até 30% (trinta por cento) dos dispêndios realizados no País, no próprio período de apuração, desde que sejam classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ e aplicados em […]”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13755.htm. Acesso em: 29.05.2023.

[5] Dizemos “teoricamente” porque a redução tributária de forma discriminatória, vinculada à políticas de conteúdo local, ainda que recaia na tributação sobre a renda, parece continuar se revestindo da condição de subsídios proibidos, nos termos do artigo 3.1(b) do Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC: “Com exceção do disposto no Acordo sobre Agricultura, serão proibidos os seguintes subsídios, conforme definidos no Artigo 1 subsídios vinculados de fato ou de direito ao uso preferencial de produtos nacionais em detrimento de produtos estrangeiros, quer individualmente, quer como parte de um conjunto de condições”.

[6] CNN Brasil. Apesar de melhora em crise de chips, analistas não veem carros mais baratos em 2022. Publicada em 18.02.2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/apesar-de-melhora-em-crise-de-chips-analistas-nao-veem-carros-mais-baratos-em-2022/#:~:text=A%20escassez%20global%20de%20semicondutores,n%C3%A3o%20deve%20ocorrer%20em%202022. Acesso em: 29.05.2023.

[7] TERRA. Preço médio dos carros passou de R$ 71 mil para R$ 137 mil em 6 anos. Publicado em 30 de junho de 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/carros-motos/preco-medio-dos-carros-passou-de-r-71-mil-para-r-137-mil-em-6-anos,3fa538005d4f3b2d702975920460bf89hmav7ccl.html. Acesso 29.05.2023.

[8] Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 164, de 2004, convertida posteriormente na Lei nº 10.865, de 2004: […] 12. Por fim, justifica-se a edição de Medida Provisória diante da relevância e urgência em equalizar, mediante tratamento isonômico, principalmente após a instituição da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins não-cumulativa e da EC nº 49, de 2003, a tributação dos bens e serviços produzidos no País com os importados de residentes ou domiciliados no exterior, sob pena de prejudicar a produção nacional, favorecendo as importações pela vantagem comparativa proporcionada pela não incidência hoje existente, prejudicando o nível de emprego e a geração de renda no País”.

[9] ANDRADE, Thális. Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em espécie, editora Dialética: Belo Horizonte, p. 422.

[10] Sobre o tema, a OMC decidiu no caso do INOVAR-AUTO: “5.39. Sob o Sistema de débito/crédito, compras de produtos intermediários de Tecnologia da Informação (TI) importados não incentivados envolvem um pagamento de tributo adiantado, situação que não é enfrentada pelas empresas que compram produtos intermediários similares domésticos de TI, que estão dispensados dos tributos aplicáveis. Mesmo no caso de reduções tributárias, empresas que compram produtos intermediários similares incentivados têm que pagar um tributo menor se comparado às empresas que compram produtos importados de TI não incentivados. Sem dúvida, como o Painel também notou, ‘o tributo a ser pago será menor que o tributo para o produto similar importado que não está sujeito ao incentivo. Não conseguimos ver como essas situações não possuem o efeito de limitar a disponibilidade de fluxo de caixa para as empresas que importam produtos de TI não incentivados”. (World Trade Organization, Appellate Body Reports, Brazil – Taxation (2019), para. 5.15 e para 5.38). [tradução livre].

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