CPI das Americanas: se não sabemos como termina, habemus esperança

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CPI é uma coisa que se sabe como começa, mas nunca como termina. É como se diz em Brasília.

Os deputados recém-instalaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a inconsistência contábil bilionária no balanço das Lojas Americanas. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), regulador do mercado de capitais, vem fazendo o mesmo, inclusive criou uma força-tarefa e instaurou inúmeros procedimentos administrativos de análise, apuração e investigação do caso.

Mas o tempo da política é outro. O cadafalso é aqui e agora. Os deputados são naturalmente atraídos pela ampla cobertura midiática e a oportunidade de apontarem o dedo – seja para a companhia, os acionistas de referência ou até mesmo o regulador.

A esquerda aproveita para atacar os bilionários, a exemplo do que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse sobre Jorge Paulo Lemann. A direita acusa o Estado na figura da CVM, como a declaração do deputado Filipe Barros (PL-PR), um dos signatários da CPI, de que “é preciso investigar a omissão da CVM, a CVM fechou os olhos”. A classe política, de modo geral, vinga-se da criminalização de que foi alvo em anos recentes ao bradar que a corrupção também ocorre em âmbito privado. Pouca importa, é claro, se tudo isso não ajuda ou até atrapalha a elucidação do ocorrido.

O caso das Americanas é lamentável e gravíssimo. Os responsáveis pela crise de uma das mais antigas varejistas do país devem ser punidos com rigor. Disso não há dúvida.

Só que uma CPI não é o lugar para isso. O seu prazo é curto, máximo de 180 dias, insuficiente até mesmo para levar a cabo uma auditoria digna do nome que apure se houve fraude e sua extensão.

Os instrumentos disponíveis à comissão tampouco alcançam efeito conclusivo de reparação, repressão ou punição. O máximo que uma CPI faz é encaminhar as conclusões ao Ministério Público para que promova a responsabilização civil e criminal dos infratores. E isso a CVM também faz.

A legitimidade de CPIs como a do Mensalão e da Covid advém da competência constitucional conferida ao Legislativo para fiscalizar e controlar os atos do Executivo. É assim que governos são expostos e sofrem impeachment (caso de Collor e a CPI do PC Farias) ou não se reelegem no pleito seguinte (caso de Bolsonaro e a CPI da Covid).

A CPI das Americanas ameaça fazer o mesmo, desta vez contra uma empresa com cerca de 45 mil funcionários e 1.800 lojas no país. Há risco de que a discussão seja excessivamente politizada e o impacto reputacional nocauteie uma companhia que já está nas cordas, a exemplo do que aconteceu com a Enron quando perseguida pelo Congresso dos Estados Unidos após a descoberta de uma fraude fiscal bilionária.

Uma das lições que aprendemos com a Lava Jato é que não devemos destruir as empresas brasileiras para coibir os maus empresários e administradores. É assim que se deve interpretar trecho do Requerimento de Instituição da CPI das Americanas, assinado pelo deputado André Fufuca (PP-MA), em que diz: “Cabe ao poder público zelar para que casos como o da Americanas sejam escrutinados, com a devida responsabilidade, para a garantia dos melhores interesses da economia nacional”.

No clássico Curso de Direito Constitucional, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco avaliam as CPIs que têm por objeto a investigação de condutas privadas e afirmam que “o inquérito legislativo que se resumisse ao propósito de desvendar atividades particulares estaria invadindo o poder de julgar, reservado aos tribunais”. Por isso, concluem que essas CPIs “não se destinam a apurar responsabilidades nem a efetuar julgamentos, mas têm por meta coletar material para os afazeres legislativos”.

Visto assim, o poder de investigar do Legislativo deve ser instrumental ao poder de legislar. Uma CPI como a das Americanas importa porque reúne dados e informações para a produção de normas, bem como para a supervisão do Executivo na aplicação das normas vigentes. O Requerimento de Instituição da CPI das Americanas delimita que o seu objetivo é justamente “investigar os graves fatos ocorridos no âmbito das Americanas S.A e propor medidas que garantam maior segurança ao mercado de capitais brasileiro, a fim de evitar que tais problemas se repitam em outras empresas”.

Não é de hoje que situações de crise geram pressão por uma atuação estatal mais eficiente. A crise de 1929 inspirou a edição do Security Exchange Act (1934) que criou a Securities Exchange Comission (SEC) com atribuições de regulamentar e fiscalizar as atividades do mercado de capitais norte-americano. No Brasil, a crise da Bolsa do Rio nos anos 1970 determinou a criação da CVM por meio da Lei 6.385/1976, mais conhecida como Lei do Mercado de Capitais, elaborada ao mesmo tempo que a Lei 6.404/1976, a Lei das Sociedades Anônimas.

Desta vez, os deputados sequer precisam ir tão longe na tentativa de criar leis que resolvam magicamente os problemas existentes. Quem aplica as Leis 6.404 e 6.385 no dia a dia atesta a utilidade de ambas ainda hoje.

O que se pede são apenas meios para que a CVM exerça as atividades regulatórias de maneira efetiva perante um mercado que cresceu e disparou à sua frente. Como resumiu o diretor da CVM Alexandre Rangel: “Para a execução do seu mandato legal de regulação de mais de 70 mil participantes, o regulador tem à sua disposição um orçamento mensal de pouco mais de R$ 1 milhão. O quadro é crítico; as atividades de supervisão e fiscalização estão em xeque”.

Possíveis soluções foram discutidas em artigos recentes de Marcelo Trindade (ex-presidente da CVM) e Isac Costa (ex-analista da CVM), além de Alexandre Rangel (diretor da CVM). As cartas estão na mesa e falta apenas ânimo político.

Se CPI é uma coisa que nunca se sabe como termina, que isso seja motivo para que acreditemos que ela pode servir ao aprimoramento do mercado de capitais brasileiro.

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