Direito à privacidade e o uso de drogas

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“Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”

Henry Louis Mencken

Desde 2015 aguarda-se o término do julgamento da repercussão geral no Recurso Extraordinário 635.659 que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Remarcado para o próximo dia 21 de junho, espera-se que a discussão caminhe no sentido de que utilizar-se do direito penal para punir aquele que porta droga para uso próprio não seja legítimo.

De antemão, esclarece-se que não se discute no presente artigo a legalização do uso de drogas, tampouco o tráfico e todas suas mazelas ou até mesmo qual o prejuízo que o uso de drogas traz à saúde. Discute-se, de forma limitada, se o porte para consumo próprio exige a intervenção do Estado. Isso porque, antes de mais nada, criminalizar o consumo afeta o princípio da lesividade – valor basilar do direito penal.

Na Alemanha[1], por exemplo, a aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito exige que as autoridades se abstenham de instaurar a persecução penal no caso de conduta meramente preparatória ao consumo pessoal e que não ofereça risco a terceiros. Para o Tribunal Constitucional Federal, um dos elementos básicos da autodeterminação humana é a decisão responsável sobre quais alimentos, produtos e entorpecentes o cidadão poderá consumir, não podendo o Estado proibir ou restringir o direito de intoxicar-se.

Julgada a causa 9.080 na Argentina[2], declarou-se inconstitucional dispositivo legal que reprimia a posse para consumo com pena de prisão. A Corte entendeu que “ao incriminar conduta que não implica perigo ou dano específico aos direitos ou à propriedade de terceiros, o dispositivo viola os direitos constitucionais à privacidade e à liberdade pessoal”.

Na Geórgia, o case 1/5/592[3] declarou inconstitucional dispositivo legal que prevê pena de prisão para aquele que adquirir até 70 gramas de folha seca de cannabispor se tratar de medida desproporcional e que não contribui efetivamente para a proteção da saúde e segurança dos indivíduos”.

Já na África do Sul[4], a Suprema Corte asseverou que o direito à privacidade autoriza o adulto a usar, cultivar ou possuir maconha de forma privada e para consumo pessoal, ressaltando ainda que tal direito se estende para além dos limites da casa ou habitação.

Em quase todos os julgamentos acima referidos, chama atenção a discussão sobre a maior potencialidade lesiva do álcool e do cigarro na vida das pessoas, bem como a falta de provas de que o uso de cannabis cause dano significativo ou produza dependência física.  Também se destacou nas decisões que o risco de migrar para drogas mais pesadas não é maior nesse entorpecente do que nas bebidas alcoólicas consumidas, além da constatação de que não há registro de dose letal de cannabis.

Neste sentido, assim como fazem parte do direito à privacidade até mesmo a autolesão, o masoquismo e a greve de fome, o uso de drogas é um comportamento que se encontra dentro da esfera de privacidade, já que afeta apenas a saúde pessoal do titular dos bens jurídicos lesados, não representando afronta à saúde pública.

Assim, o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional também por afetar o artigo 1º, III, da Constituição que trata da dignidade da pessoa humana. Dignidade que se caracteriza pela autodeterminação, pelo respeito ao pluralismo e ao modo de vida de cada um. Deveria então ser estranho ao direito penal apenar qualquer ato que afete a intimidade ou esfera de privacidade do homem quando tal ato não interfere na dignidade de terceiros.

Para o Ministro Barroso, cujo voto já foi declarado no sentido da descriminalização, “o Estado tem todo o direito de combater o uso, fazer campanhas contra, educar e advertir a população. Mas punir com o Direito Penal é uma forma de autoritarismo e paternalismo que impede o indivíduo de fazer suas escolhas existenciais”.

Não foi outro o entendimento do relator, Ministro Gilmar Mendes, para quem a legislação atual “parece ofender de forma desproporcional a vida privada e a autodeterminação”.

Além disso, importante que Supremo defina, com critérios objetivos, os casos de uso e tráfico de drogas. O que ocorre atualmente é que, diante da falta de distinção clara, usuários são comumente tratados como traficantes lotando assim os presídios. Com mais de 830 mil presos, ostentamos a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que um terço desse contingente foi condenado ou aguarda julgamento por tráfico de drogas.

Causa espanto que num universo de cerca de 2.500 tipos penais previstos no ordenamento brasileiro, duas em cada três mulheres estão presas por causa da Lei de Drogas. Os dados são gritantes: a aplicação da Lei é disfuncional e as presunções para o encarceramento estão erradas.

Em Portugal, por exemplo, decidiu-se que “não viola o princípio da legalidade criminal a interpretação segundo a qual são puníveis como crime de consumo as situações de posse ou aquisição de droga em quantidade superior ao consumo médio individual para dez dias”[5].

Já o Ministro Barroso propôs em seu voto “uma quantidade de referência para distinguir consumo pessoal de tráfico em 25 gramas para viger até que o Congresso se manifeste a respeito (…) o mesmo raciocínio vale para as 6 plantas fêmeas”.

Ademais, não podemos desvincular a questão racial do assunto, já que uso de elementos subjetivos, carregados de preconceitos, como a cor da pessoa, local de moradia e vestimenta, para além de indicarem a desigualdade social, se refletem no altíssimo índice de encarceramento de pessoas pretas não perigosas decorrente dessa criminalização.

Isso porque, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 67,4% dos detentos são negros. Levantamento feito pela Agência Pública de 2019 traz ainda a informação de que a quantidade média para um preto ser condenado por tráfico é de 145 gramas, enquanto a média do branco é de 1 quilo e 150 gramas. A diferença é abissal!

Sobre este viés, o Ministro Gilmar Mendes destacou em seu voto que “a percepção geral é que o tratamento criminal aos usuários de drogas alcança, em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade de superar as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos por condutas que não vão além da lesão pessoal”.

Por fim, a aplicação do princípio da proporcionalidade nos leva à conclusão de que a medida de criminalizar o porte, mesmo sendo capaz de atingir o fim almejado e sendo necessária para atingi-lo, pode ainda assim ser desproporcional se o resultado obtido com a restrição imposta ao direito individual superar o incremento de proteção conferido ao interesse público que a norma quer atingir. Justamente por isso, a lei penal deve estabelecer condutas com diferenças significativas em relação à natureza e extensão do perigo representado pelos interesses que visa proteger.

Não é um debate juridicamente fácil, mas os números não deixam dúvidas de que precisa ser feito.


[1] 2 Bvl 43/92; 2 Bvl 51/92; 2 Bvl 63/92; 2 Bvl 64/92; 2 Bvl 70/92; 2 Bvl 80/92; 2 Bvl 2031/92; 1369/90

[2] Caso Sebástian Arriola y Otros. Recurso de Hechio.

[3] Citizen of Georgia Beka Tsikarishvili v. The Parliament of Georgia

[4] CCT 108/17 e CCT 7/96

[5] Acórdão 587/14

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