Zanin tem notável saber e reputação ilibada, a questão é outra

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A indicação de Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal tem despertado polêmicas. Enfrentemos algumas.

A Constituição da República estabelece que ministros do STF devem ter notável saber jurídico e reputação ilibada. Trata-se de requisitos abertos, sobre os quais cabe ao presidente da República e ao Senado juízos amplamente discricionários.

A mim, parece que os requisitos se encontram muito claramente atendidos.

Cristiano Zanin tem notável saber jurídico. Conduziu a defesa de um réu massacrado pelo sistema de justiça e pela opinião pública, sofreu críticas de todos os lados, resistiu firme, insistiu no seu estilo e, no final, venceu. Eu mesmo, em alguns momentos, devo confessar, cheguei a entender que, do ponto de vista da estratégia defensiva, Zanin poderia ter sido substituído. Considerava-o, por exemplo, um orador pouco eloquente. Suas sustentações orais não rendiam boas peças de propaganda.

Recordava-me do exemplo de Fidel Castro (não por afinidades, mas pelo fato de ter sido, acima de qualquer dúvida, um grande propagandista), cuja peça máxima de defesa política foi justamente uma sustentação oral num tribunal (“a História me absolverá”). Não é possível saber qual teria sido o desfecho se Lula tivesse optado por um caminho desse tipo – ou se tivesse optado por um advogado mais estrelado e experiente, e havia muitos à disposição. Mas sabemos que o caminho defensivo conduzido por Zanin deu certo. E obviamente não poderia ter dado certo sem extraordinário conhecimento jurídico.

Noutro giro, ainda sobre os questionamentos em torno do notável saber, é necessário contrapor o frequente equívoco de atribuir validade apenas ao conhecimento produzido na academia ou ao conhecimento testado mediante aprovação em concursos públicos (em especial nos concursos tidos como mais rigorosos, que são, no campo jurídico, os concursos para o Ministério Público e para a magistratura).

Na advocacia, é preciso dizer, também há conhecimento, não menos válido do que o conhecimento produzido nessas outras esferas. Tanto que o STF já teve juízes bons e ruins das mais diversas procedências. Evandro Lins e Silva, jurista brilhante cassado pelo regime militar, era advogado. Sepúlveda Pertence, o mais espirituoso ministro que já integrou a corte, tinha origem no Ministério Público. Néri da Silveira, um juiz pacificador, era magistrado de carreira. Enfim, todas as origens profissionais são capazes de produzir quadros bons e ruins. A academia, a magistratura e o Ministério Público não detêm o monopólio da formação de bons juízes para a Suprema Corte.

Sobre a reputação ilibada, de igual forma, os elementos até o momento disponíveis não permitem um juízo negativo. Cristiano Zanin, já há muitos anos, vem tendo sua vida submetida a um escrutínio extremamente rigoroso, a uma verdadeira devassa, e nada se encontrou de desabonador. Simpatize-se ou não com ele, trata-se, em resumo muito simples, de uma pessoa correta.

Dito isso, poderíamos então concluir que a indicação de Zanin foi um acerto do presidente Lula? Não necessariamente.

No caso, pouco ou nada se sabe sobre o que o indicado pensa a respeito de temas essenciais. O que pensa sobre direitos humanos? Sobre direitos sociais? Sobre direitos dos povos indígenas? Sobre o papel do Estado no domínio econômico? Sobre movimentos sociais como o MST? Dos grandes aos pequenos temas, não se conhece o que Zanin pensa. Sabe-se que ele tem uma visão crítica do processo de criminalização da política que se abateu sobre o Brasil, o que é positivo. Mas – assim como a História revelou que, para ser um bom juiz constitucional, não basta ser um bom juiz de costumes – tampouco é suficiente ser um juiz garantista. É necessário mais.

Numa democracia constitucional, é legítimo esperar que o presidente da República, investido pelo voto popular, indique para a Suprema Corte ministros comprometidos com uma visão de mundo compatível com a do povo que o elegeu. Sendo Jair Bolsonaro um conservador, era legítimo que ele indicasse juízes conservadores, inclusive terrivelmente conservadores. Agora, sendo Lula um presidente progressista, é legítimo esperar que indique ministros ou ministras progressistas. Simples assim. No caso de Cristiano Zanin, porém, ainda não é possível afirmar que se trata mesmo de um progressista. Daí alguma dúvida sobre o acerto da indicação, não nos planos do notável saber e da reputação ilibada, mas no nível político-ideológico mesmo.

É preciso consolidar no Brasil a noção de que é natural a indicação – seja para a Suprema Corte, seja para outros postos estratégicos do sistema de justiça – de juristas comprometidos com a cosmovisão do governo. Nos Estados Unidos, frequentemente invocado como um modelo, há muita transparência nesse particular. Presidentes republicanos indicam juristas conservadores. Presidentes democratas indicam juristas progressistas. Em geral, o modelo funciona bem, sem prejuízo de alguns desvios, às vezes positivos, como o do chief justice Earl Warren, nomeado pelo republicano Eisenhower, mas posteriormente referência da era mais progressista da história da Suprema Corte norte-americana.

Por outro lado, não se pode deixar de registrar que as dúvidas lançadas sobre notável conhecimento jurídico, embora improcedentes, têm alguns outros potenciais efeitos pernósticos nem sempre devidamente dimensionados. A qualquer ser humano que tem alguma capacidade colocada sob suspeita é comum que passe a se comportar de modo a comprovar que tem, sim, capacidade.

É natural que um ministro da Suprema Corte cuja capacidade para estar ali é questionada passe a atuar para “ser aceito” pelo mainstream – justamente o oposto do que se espera de uma corte constitucional progressista, necessariamente contramajoritária. O televisionamento das sessões do Supremo acentuou essa problemática, compelindo os membros da corte, com pressão cada vez maior, a aderirem ao mainstream.

Esse quadro redobra os desafios que recairão sobre a atuação de Zanin como ministro do STF. Em sua atuação forense e também em episódios fora dos autos, como na situação em que se manteve sereno ao ser agredido verbalmente num banheiro de aeroporto, o indicado deu mostras de firmeza. Manter essa firmeza, não se dobrando à pressão da opinião pública e do mainstream, será seu maior desafio.

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