Como a genética da cerveja ajuda mestres cervejeiros a descobrir novos sabores exóticos da bebida


Pesquisadores produziram uma levedura totalmente nova que não apenas manteve as características de fermentação robustas necessárias para a fabricação comercial, mas também ofereceu novos perfis de sabor nunca antes cheirados ou provados nesse tipo de bebida. Como a genética ajudou mestres cervejiros a reinventar a bebida.
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Um dos meus passatempos favoritos no verão é tomar uma cerveja gelada em um bar com os amigos depois do trabalho. Mas não qualquer cerveja — tem que ser uma ‘lager’ (fermentada e armazenada em baixas temperaturas). E eu não sou a única. Com seu perfil crocante e refrescante, a lager é responsável por mais de 90% do mercado global de cervejas.
No entanto, todas as cervejas lager têm sabor e aromas bastante semelhantes. A diversidade é limitada e se deve, principalmente, ao pequeno número de leveduras comerciais disponíveis para produção. Mas, e se pudéssemos nos libertar dessas restrições e criar tipos completamente novos e empolgantes?
Nosso recente estudo, publicado na PLOS Genetics, adota uma abordagem que faz exatamente isso, usando levedura selvagem da Patagônia para criar uma nova lager.
O problema com a levedura de cerveja tradicional
As leveduras são fungos unicelulares que fermentam o açúcar em álcool e dióxido de carbono. Durante séculos, os seres humanos usaram-a, consciente ou inconscientemente, para produzir alimentos fermentados, como vinho, cerveja e pão.
A levedura lager tradicional, Saccharomyces pastorianus, é um cruzamento híbrido entre duas outras espécies: S. cerevisiae — usada para produzir vinho e cerveja ‘ale’ (uma das mais antigas do mundo), e S.eubayanus, uma espécie selvagem encontrada em árvores.
A levedura lager híbrida foi domesticada há centenas de anos e, desde então, foi otimizada para a fabricação de cerveja em condições frias.
No entanto, essa longa história de reprodução seletiva, semelhante ao que vemos em nosso gado, plantações e animais de estimação, também reduziu a diversidade genética da levedura lager, resultando em uma gama muito limitada e, consequentemente, pouco espaço para a inovação.
Entre na levedura selvagem da Patagônia
Até alguns anos atrás, era impossível criar uma nova lager, simplesmente, porque a espécie materna da levedura, S. eubayanus, ainda não havia sido descoberta.
Mas, em 2011, essa espécie foi encontrada na casca de árvores na Patagônia. Desde então, centenas de cepas foram isoladas de florestas chilenas e argentinas, carregando uma quantidade impressionante de diversidade genética.
Nossa pesquisa usou essa descoberta para expandir os perfis de sabor e aroma da cerveja. Nos concentramos especificamente em três linhagens de S. eubayanus do sul do Chile que tinham características distintas e muito promissoras para a fabricação da bebida. Elas são tolerantes a temperaturas frias, o que é necessário para a produção de lager que, normalmente, ocorre em entre 8 e 15 graus Centígrados. Também foram eficientes na transformação da maltose em álcool e dióxido de carbono, além de produzirem perfis de aroma exclusivos.
Ao criar híbridos dessa linhagem selvagem com a levedura ale S. cerevisiae, produzimos uma levedura lager totalmente nova que não apenas manteve as características de fermentação robustas necessárias para a fabricação comercial, mas também ofereceu novos perfis de sabor nunca antes cheirados ou provados nesse tipo de bebida.
Fabricando a cerveja do futuro
Dito isso, nossas primeiras tentativas de gerar novos híbridos não criaram cepas com as características que queríamos — elas não estavam adaptadas às condições de fermentação. Mas isso pode acontecer.
No entanto, poderíamos aprimorar esse processo no laboratório; chamamos isso de evolução experimental. Cultivamos os novos híbridos em um meio semelhante ao ‘mosto’ (mistura açucarada para fermentação alcoólica) de cerveja por seis meses, com o objetivo de melhorar seu desempenho na fabricação de cerveja. Isso criou várias novas cepas graças ao processo natural.
Em seguida, selecionamos as que demonstraram uma capacidade de fermentação superior e, também, de produzir níveis mais altos de álcool. Descobrimos que os híbridos que herdaram as mitocôndrias (o “motor” da célula) de seu progenitor S. eubayanus apresentaram maior potencial evolutivo e se tornaram mais eficientes na conversão de açúcar em álcool, podendo criar um teor alcoólico elevado.
Mas, o mais empolgante para nós foi que as novas cepas de lager que produzimos apresentaram um espectro muito mais amplo de perfis de aroma, com um caráter mais herbáceo, picante e de cravo.
Implicações para o setor de cerveja
Acreditamos que nossa nova levedura híbrida tem o potencial de revolucionar a fabricação de lager. Os fabricantes de cerveja artesanal, em particular, poderiam usá-las para desenvolver novos estilos exclusivos, fazendo com que seus produtos se destaquem em um mercado lotado e, até mesmo, atraiam aqueles que preferem as cervejas ale mais frutadas e lupuladas (como lugares da Nova Inglaterra, Índia e Bélgica)
Já usamos as novas cepas híbridas para produção em pequena escala (500 litros) em associação com cervejarias locais no Chile.
Nosso estudo não apenas abre novas possibilidades para o setor, mas, também, ressalta a importância da biodiversidade na produção. Ao aproveitar a genética natural das leveduras selvagens, podemos criar tipos que atendam ao gosto em constante evolução dos consumidores.
Como o setor de cervejas continua a crescer e a se diversificar, esses novos híbridos podem desempenhar um papel crucial na formação do futuro da fabricação de cerveja.
*Jennifer Molinet é pesquisadora de pós-doutorado em Microbiologia na Universidade de Estocolmo.
**Este texto foi publicado originalmente no site da The Conversation Brasil.
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