O abuso do direito e o comprometimento da saúde

Direito de todos os brasileiros, garantido pela Constituição Federal, o acesso à saúde tem sido cada vez mais discutido em termos de equidade e justiça social. A temática abarca múltiplas dimensões, ao considerar aspectos políticos, econômicos, sociais e até jurídicos, e envolve todo um sistema de políticas públicas ligadas aos cenários nacional e internacional. 

A garantia de uma melhoria na oferta de serviços de saúde passa obrigatoriamente pela incorporação de novas tecnologias, pelo investimento em pesquisa, inovação, e por um sistema de saúde sustentável, que permitam dissipar diferenças e dar a todos o acesso a esse direito fundamental. Um dos pilares essenciais na construção desse conjunto de ações voltados à promoção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva vem sendo ameaçado por interesses que colocam em segundo plano a saúde do brasileiro.

Desde 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição Federal e, por conseguinte, de direitos fundamentais como a saúde, considerou inconstitucional o parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial, que previa prazos indeterminados de vigência de patentes. Tal regra permitia a prorrogação de patentes de medicamentos para além dos 20 anos previstos na lei, elevando excessivamente o tempo de exploração exclusivo dos inventos, ferindo a própria limitação temporal preconizada pela Constituição Federal e pelo Acordo TRIPS.

Como última instância do Poder Judiciário, decisões do STF são consideradas nas análises de processos em todos os graus e tribunais do país. Contudo, detentores de patentes que tiveram seus prazos corrigidos pela decisão do Supremo, recorrentemente abusam do direito de petição ou ação judicial, prática conhecida como sham litigation, na tentativa de ampliar o prazo de exclusividade de uso de patentes de medicamentos, desconsiderando decisão da Corte Suprema, num claro movimento de se manter com mais tempo de exclusividade no mercado, impedindo a ampliação do acesso a medicamentos de qualidade, e a preços bem mais acessíveis para toda a população brasileira.

Essa prática que limita a livre concorrência extrapolou o limite do Judiciário e foi parar também no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que analisa a conduta de um detentor de patente, que, por anos, conseguiu depositar várias patentes relacionadas ao mesmo princípio ativo, estendendo a exclusividade para muito além do previsto em lei. Com esta medida visivelmente protelatória e anticoncorrencial, perdem os consumidores, o setor público, e o mercado farmacêutico. 

Não estamos aqui criticando a propriedade industrial. A legislação que garante a patente sobre a invenção de um novo medicamento valoriza a inovação, estimula a pesquisa, induz a criação de novas soluções de tratamento, alimenta o bem-estar e a saúde da população. E isto premia também a indústria nacional, que já detém e continua depositando, sistematicamente, novos pedidos de patentes. O que não se pode aceitar é a flagrante artimanha de prejudicar algum concorrente com ações frequentes promovidas junto ao Judiciário. Atrapalham não só o desenvolvimento econômico e científico de nosso país, promotores de parte de nossa riqueza, emprego e renda, como também colocam em risco os atendimentos do sistema público de saúde e a vida de seus usuários. 

A indústria nacional respeita e valoriza o sistema de patentes, considerando-o crucial para a continuidade nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e produção de medicamentos no Brasil. Investe há anos para produzir medicamentos com a mesma eficácia dos produtos de referência, muitos com aperfeiçoamentos necessários para o usuário, aguardando pacientemente os 20 anos de exclusividade previstos na Lei de Propriedade Industrial. Logo, não parece razoável transformar o Judiciário num palco de questionamentos insustentáveis, e prorrogar um debate já pacificado pelo Supremo. 

Apesar de decisão unânime da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal de 1ª Região (TRF1) e de todas as sentenças proferidas até agora em primeira instância apontarem para o indeferimento das solicitações protelatórias dos pedidos feitos em juízo, considerando não só a decisão do Supremo, mas também a não indicação do prejuízo alegado, em decorrência de atrasos do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) na análise do pedido de registro de patente, há um dano para a indústria nacional que se vê obrigada a retardar o desenvolvimento de medicamentos para a população, tanto no mercado público quanto no privado.

A concorrência é saudável, viabiliza o desenvolvimento econômico, tecnológico e a inovação. Já o uso abusivo do sistema de patentes com o objetivo central de obter vantagem de mercado, além de trazer insegurança jurídica, constitui um claro flagrante de infração da ordem econômica, com a finalidade de causar dano econômico às empresas concorrentes. Isso não iremos aceitar. 

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