Farra do Boi: Conheça a história da tradição que se tornou polêmica no século 21

Há décadas, a Farra do Boi tem sido um evento polêmico que desperta paixões e conflitos em Santa Catarina. O que começou como uma manifestação cultural tradicional, envolvendo o manejo de bois soltos pelas ruas, gradualmente se transformou em casos de maus tratos e de revolta entre a população.

A Farra do Boi já foi diferente de como a conhecemos nos dias de hoje – Foto: Pexels/Reprodução/ND

Nesta matéria, o ND+ explora a história da Farra do Boi e como ela evoluiu ao longo do tempo, destacando a mudança de perspectiva, as ações de combate e a conscientização conduzidas por especialistas e autoridades.

Entre os especialistas que buscam contextualizar a prática, destaca-se Joi Cletison, historiador e ex-coordenador do NEA (Núcleo de Estudos Açorianos) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Com vasta experiência no estudo das manifestações culturais tradicionais açorianas, Cletison dedicou anos de pesquisa à Farra do Boi, investigando suas origens e impactos.

Tradição açoriana

Segundo Joi Cletison, essa tradição deriva de uma herança cultural trazida pelos povos açorianos.

“Só que deixando bem claro, o que os açorianos trouxeram para nós não é a mesma coisa que acontece hoje com essa brincadeira do boi, a forma como acontece foi deturpada”, diz.

Cletison conta que “nos Açores existem até hoje as touradas, sendo uma atração turística que rende dividendos para todos que alugam casas, hotéis e que organizam essa tourada à corda”, explica.

“Nos Açores, são touros mesmo, não bois, que a gente vê no dia a dia. A brincadeira com o boi lá chama-se touradas á corda e só tem graça quando o animal é bravio e investe contra as pessoas, lá a quantidade de pessoas que saem machucadas com essa brincadeira é impressionante, faz parte da brincadeira”.

O especialista explica que: “Ao contrário do que acontece aqui, o animal é muito bem protegido pela legislação lá nos Açores. Para começar, os touros são criados em ganadarias, no interior, e no isolamento, longe das pessoas”.

Segundo Cletison, nos Açores a legislação permite até quatro animais em uma única tourada, “cada animal corre de 20 a 30 minutos, sendo que depois desse tempo ele vai descansar por no mínimo uma semana, e todos esses animais são marcados e têm número de identificação”, afirma.

“Se um animal desse entrou ali no espaço que vai ser a brincadeira, e em cinco minutos ele escorregou, caiu e se machucou ou qualquer coisa que aconteça com ele, sera substituído imediatamente, tem equipes de veterinários de plantão, polícia de plantão justamente para proteger o touro” conta.

“Lá a prefeitura participa da organização dessa brincadeira, emitindo as licenças”.

Cletison afirma também que é obrigatório tirar uma licença para fazer isso: “Você paga um seguro para quaisquer danos que aconteçam à propriedade privada, ao animal e qualquer coisa é coberta por seguro, a tourada acontece na rua mesmo”.

“As casas ao redor são todas preparadas e cobertas com tapumes de madeira para proteger o animal, e ele é solto na rua mesmo, também existe uma marcação branca, feita no chão para delimitar o espaço da brincadeira, quem ultrapassá-la a partir dali está por conta e risco na brincadeira”.

“Então, a ‘farra’ acontece de uma forma saudável, protegendo o animal e as pessoas que quiserem brincar são donas da sua vontade”, acrescenta.

A chegada ao litoral

Cletison explica que aqui no litoral os povos açorianos precisaram se adaptar com a vida do mar, com a pesca, pois eles não eram pescadores, eram agricultores.

“Então as pessoas se adaptarem a comer peixes, mandioca. As brincadeiras com o boi se chamavam de boi na vara, boi de campo ou boi na corda e não Farra do Boi”.

De acordo com o especialista, “quem batizou as brincadeiras de “farra do boi” foi a imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo de uma forma tendenciosa” afirma o especialista.

“Aqui em Santa Catarina, acontecia sempre durante a páscoa, ficando quarenta dias sem comer carne na quaresma, somente peixes e chegava na sexta-feira santa as pessoas compravam um boi em cerca de 30 pessoas entravam nessa cota”.

De acordo com Cletison, “na sexta-feira, o boi participava dessa brincadeira, ou em um campo, ou na propriedade rural, ou em uma corda, uma vara que rodava em torno de uma árvore”.

‘Eles brincavam com o animal e não tinham interesse nenhum em machucá-lo, pois esse animal seria logo depois abatido e transformado em alimento no sábado de aleluia e no domingo de páscoa. Cada um que entrou na cota para comprar o boi recebia a sua parte em carne’.

‘Essa era a tradição, e isso foi evoluindo depois que nos anos da década de 1980 o STF julgou uma denúncia de maus-tratos aos animais, mas o réu era o estado de Santa Catarina’ complementa o pesquisador. O estado não apresentou sua defesa, e foi julgado a reveria, onde surgiu o acórdão do STF que criminalizou a tradição.

‘A culpa é da grande mídia para difamar a tradição, atribuindo atos de maus tratos que não aconteciam. Raramente acontecia do animal se machucar”, afirma Joi Cletison.

A transição da prática

O especialista conta que esse julgamento proibiu a tradição e criou uma nova “farra”, a dos policiais contra os farristas. “Então toda vez que ocorria a brincadeira com o boi, o Estado seria penalizado”.

“Os policiais, quando chamados para acabar com uma brincadeira do boi, abatiam o animal a tiros e dispersavam as pessoas com cassetetes, e os farristas revidavam com agressões, virou uma nova farra. Isso foi criando um espírito muito ruim entre os farristas e os policiais”.

Para Joi Cletison, isso foi um dos fatores que contribuíram para que a tradição se tornasse uma completa barbaridade nos dias de hoje.

“Para ficarem escondidos da polícia, eles utilizam às vezes o mesmo animal, correndo 10 horas seguidas atrás do mesmo bicho, não caminhando, mas utilizando motos e carros”.

“É uma agressão, uma grande estupidez, para dizer assim, é desumano. Então hoje, com certeza, isso não é uma tradição, mas sim um ato desumano”.

Segundo o historiador quem tem muita culpa disso “é o próprio Estado que não defendeu a tradição junto ao STF e não pediu para regulamentar”, afirmou o especialista.

Para fazer uma comparação, o especialista traça um paralelo e faz uma crítica às vaquejadas e rodeios que existem legalmente pelo Brasil afora, que são regulamentados e têm grandes patrocinadores investindo no evento.

“Se alguém já teve a oportunidade de assistir a este tipo de evento, ela é tão agressiva e tão estúpida como as farras do boi hoje”, afirma.

“Os peões jogam aquelas boleadeiras nos pés do boi, quebram as pernas, amarram um artefato nas partes íntimas do animal para dificultar a captura, então é uma completa estupidez, comparado ao que é hoje a farra que não dá mais para chamar de tradição”.

Concluindo, Cletison afirma que “não tem como comparar a tradição trazida pelos açorianos com a barbaridade que ocorre nos dias de hoje, era totalmente diferente e nem tem comparação”.

Dados da Polícia Militar Ambiental

Além dos estudos acadêmicos, a PMSC tem desempenhado um papel fundamental no combate à prática criminosa da Farra do Boi.

De acordo com informações do comando da corporação, em 2023 a PMSC (Polícia Militar de Santa Catarina) atendeu cinco ocorrências da prática em Florianópolis, e no âmbito estadual o número dobra para 10 casos.

Ação da PMSC

Segundo o capitão Jorge Augusto de Souza Martins, do 24º BPM (Batalhão de Polícia Militar) de Biguaçu, as ações realizadas pela corporação no combate aos maus-tratos aos animais  incluem medidas preventivas e repressivas.

“Na verdade, temos várias ações que são desenvolvidas tanto preventivamente como repressivamente. Sabemos que as ações criminosas de maus-tratos animais são preocupantes”, afirma.

Em relação à “farra do boi”, o capitão explica que as ações são intensificadas durante o período da Semana Santa, mas a preparação começa antes, com o emprego da agência de inteligência para o monitoramento de locais e a realização de barreiras policiais, especialmente para veículos que possam transportar animais para o município.

Além disso, a polícia conta com o apoio de outras unidades, como a Polícia Militar Ambiental, que realiza patrulhamento marítimo e fiscalização de embarcações, e o patrulhamento aéreo, possibilitando uma fiscalização mais efetiva de locais de difícil acesso.

“É importante ressaltar que além do policiamento ordinário, realizamos abordagens, colhemos informações de populares e mantemos um patrulhamento diário”, afirma.

“Essas ações são desenvolvidas rotineiramente, começando pelo menos um mês antes da Semana Santa, por um período de duas a três semanas, dependendo do desenvolvimento das ações criminosas no município”, destaca.

Quanto à captura dos animais, o capitão Jorge explica que há um convênio com a Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina) e o encaminhamento dos animais ao Grupo de Operações de Resgate (GOR), que tem sede em Tijucas.

“Quando um animal é localizado, a polícia realiza a contenção e isolamento da área, garantindo a segurança tanto das pessoas quanto do patrimônio”.

“A identificação de possíveis envolvidos é feita no local, mas o foco principal é garantir o bem-estar do animal. O grupo de operações de resgate, vinculado à Cidasc, é acionado para realizar a captura do animal e tomar as medidas necessárias para seu destino adequado”, finaliza.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.