Eglê, a militante e pioneira que é uma enciclopédia ambulante

Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher, diz a máxima surrada pelo uso. No caso de Eglê Malheiros Miguel, há controvérsias em torno do tom peremptório dessa frase, porque ela foi tão (ou mais) protagonista quanto muitos intelectuais que orbitavam ao redor de seu marido, o escritor Salim Miguel (1924-2016), autor de dezenas de livros e um dos criadores do Grupo Sul, de presença marcante nas artes de Santa Catarina no fim dos anos 1940 e durante a década de 1950.

Eglê vai fazer 95 anos nesta segunda-feira (3), mantendo a lucidez e sua notória coerência em relação à cultura e à política no país.

Eglê Malheiros com a diretora do documentário, Adriane Canan – Foto: Divulgação/ND

Se a data será comemorada discretamente em família, em Brasília, onde mora, o documentário “Eglê”, de Adriane Canan, em fase de finalização, vai preencher uma lacuna ao mostrar a trajetória da professora, escritora, tradutora, editora e roteirista que nunca falou alto, mas conciliou com força e energia as atividades de mãe, mulher, profissional e agente fomentadora de transformações que a sociedade reclamava.

O documentário retrata a mulher determinada, presa pela ditadura militar, autora do argumento do primeiro longa catarinense e única mulher no Círculo de Arte Moderna, o Grupo Sul.

O telefilme será apresentado em duas sessões no dia 12 deste mês no Museu da Escola Catarinense, em Florianópolis, a partir das 18h.

O filme é uma viagem de 82 minutos pela infância de Eglê, que perdeu o pai assassinado em Lages por questões políticas, pela adolescência como leitora contumaz e líder que incomodava a direção do Colégio Coração de Jesus, em Florianópolis.

Ainda aborda todas as etapas da fase adulta, quando deu aulas, publicou livros e criou cinco filhos – João José, Antônio Carlos, Sonia, Paulo Sérgio e Luis Felipe – enquanto o marido Salim trabalhava como jornalista, em Santa Catarina (na Agência Nacional) e depois no Rio de Janeiro, já nos anos da ditadura militar, em revistas como “Manchete” e “Ficção” (nesta, num grupo que tinha também Eglê, Fausto Cunha, Laura e Cícero Sandroni).

Assim como Salim, detido logo após o golpe de 1964, Eglê ficou uma semana presa no Hospital do Exército, em Florianópolis, deixando os filhos pequenos aos cuidados de uma vizinha. Além da prisão por professar ideias que o regime considerava subversivas, ela nunca aceitou o afastamento forçado da função de professora do Instituto Estadual de Educação, que interrompeu a carreira de que tanto gostava.

Com o filme, a diretora Adriane Canan quis fazer uma homenagem a Eglê, que também foi uma precursora no cinema catarinense ao escrever em 1957, com Salim Miguel, o argumento de “O preço da ilusão”, o primeiro longa-metragem produzido em Santa Catarina.

Ela também fez teatro, uma das áreas das artes abarcadas pelo Grupo Sul, e editou a revista “Sul”, porta-voz do grupo, que abriu espaço para novos autores locais e de outros Estados.

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Eglê foi casada com Salim Miguel, com quem teve 5 filhos – Divulgação/ND

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Leila Pessoa e Gabi Bresola,responsaveis pelo projeto – Divulgação/ND

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Eglê foi professora concursada em Florianópolis – Divulgação/ND

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Eglê Malheiros com a diretora do documentário, Adriane Canan – Divulgação/ND

Talento precoce e posições firmes

Num tempo em que os homens dominavam as letras e eram alvos da censura e dos rigores do poder, Eglê foi uma liderança inconteste, se impondo pela inteligência, atuação e militância, assumindo posições que poucos tinham coragem de tornar públicas em defesa da democracia, da liberdade e da educação de qualidade.

Num texto escrito em julho de 1998, e lido por ela mesma no filme, Eglê diz: “Mais do que nunca precisamos de liberdade e de democracia”. E fechou a leitura defendendo a “escola pública e gratuita de qualidade, do primário à pós-graduação”.

Nascida em Tubarão, em 1928, Eglê mudou-se para Lages com a família e depois, com o assassinato do pai, veio com a mãe (Rita da Costa Ávila Malheiros) para Florianópolis. Estudou em Porto Alegre e começou a lecionar ainda muito jovem. Com 18 anos, entrou na faculdade e foi a primeira mulher a se formar em direito no Estado.

Em 1946, ingressou no PCB (Partido Comunista Brasileiro), espaço no qual já militava anteriormente e onde teve grande participação. Sua mãe também era filiada ao partido e chegou a ser candidata a deputada federal nas eleições de 1947.

No fim da década de 1940, Eglê ajudou a construir o Círculo de Arte Moderna, conhecido como Grupo Sul. Foi a única mulher a participar do grupo, que, segundo ela, rompeu com “uma realidade provinciana e colonizada” nas artes e na literatura.

Pelas Edições Sul, em 1952, publicou seu primeiro livro de poemas, “Manhã”. No mesmo ano, casou-se com Salim Miguel, com quem teve cinco filhos e uma parceria de mais de 60 anos.

Hoje, ela define assim o espírito do Grupo Sul: “Queríamos nos afirmar como pessoas pensantes, com sensibilidade artística, que não poderiam ignorar a terra em que viviam”.

Acervo de 3 mil peças em catalogação

Eglê Malheiros foi professora concursada do Instituto Estadual de Educação (em 1948, chamado de Instituto de Educação Dias Velho) e lecionou história geral, história do Brasil e história de Santa Catarina.

Presa em abril de 1964, foi impedida de continuar a dar aulas e só voltou a lecionar no retorno a Florianópolis, em 1979.

No Rio, trabalhou na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e fez mestrado em Comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

No dia de sua prisão, em 1964, uma vizinha pediu ao motorista de uma Kombi que fosse dar uma volta com os filhos da escritora para que não vissem a mãe sendo levada de casa. Enquanto estava detida, soube que um dos filhos estava com febre, mas nada pôde fazer. Depois, cumpriu quase 40 dias de prisão domiciliar.

No filme de Adriane, Eglê cita as dificuldades para fazer cinema na década de 1950 em Florianópolis – desafio que o Grupo Sul encarou com ousadia, mesmo sem recursos e estrutura para isso.

A seccional catarinense da Associação Brasileira de Escritores, criada por ela em 1951, foi qualificada em um documento militar como um “órgão de inspiração comunista”.

No filme rodado em Brasília e que usou gravações anteriores, entrevistas e o vasto acervo guardado pela escritora, Eglê fala com bom humor dos tempos do colégio de freiras, em plena 2ª Guerra Mundial, quando editava um pequeno jornal que se posicionava contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e fazia piquetes no pátio da escola.

O filme “Eglê” vai entrar na programação da CineBrasil TV e depois será inscrito em festivais de cinema. Paralelamente, vem sendo executado o Projeto Acervo Eglê, que está fazendo a triagem, higienização, catalogação, classificação, pequenos restauros de conservação preventiva, digitalização e acondicionamento do acervo de mais de 3 mil itens guardados pela escritora, entre manuscritos, originais, documentos e fotografias.

Filme pode “fazer bem” a Santa Catarina, diz filho

Filho de Eglê Malheiros, o jornalista e crítico musical Antônio Carlos Miguel acredita que o documentário vai facilitar o reconhecimento da mãe como autora importante, mas especialmente como militante num tempo de muita repressão política.

Ele e os irmãos eram pequenos quando Eglê foi presa, em 1964. “Ficamos sem pai nem mãe, literalmente”, afirma ele ao dizer que Salim Miguel foi detido no mesmo período e permaneceu ainda mais tempo recluso logo após o golpe militar.

O jornalista destaca que a mãe foi “uma enciclopédia ambulante”, que impressionava a todos pela bagagem cultural, transmitindo aos filhos o gosto pelo conhecimento e o senso crítico e questionador que é a marca de todos eles.

Ela era a primeira leitora – sempre muito crítica – dos textos do marido, e nessa lida, a par da criação dos filhos, deixou de dar vazão à veia poética que revelou especialmente no livro “Manhã”, lançado em 1952 pelas Edições Sul. “Essa obra não envelheceu”, afirma Antônio Carlos.

Outro aspecto relevante é que o filme pode trazer reflexões e “fazer bem a Santa Catarina”, Estado onde as ideias progressistas de Eglê encontraram pouco eco. “Ela sempre teve coragem e foi muito coerente em sua vida e carreira”, diz o filho.

O documentário passa a visão de mundo da escritora, que nunca deixou de ser militante, mesmo quando precisou abandonar o trabalho para cuidar da prole. E, quando militava, não tornava isso ostensivo em casa. “Quanto éramos jovens, os amigos que nos visitavam ficavam pasmos com seu conhecimento enciclopédico”, conta.

No Rio de Janeiro, enquanto Salim Miguel cumpria longa jornada de trabalho, Eglê também se desdobrava em trabalhos de tradução (ela conhecia cinco línguas) e revisão de livros. Ela verteu para o português obras de Hermann Hesse, Martin Gottfried (teatro), Paul Tillich e Howard Mumford Jones.

Entre as obras de sua autoria aparecem “Desça, menino!” (1985), “Vozes veladas – Peça em dois atos” (1996), “Memórias de editor” (com Salim Miguel, 2002), “Os meus fantasmas” (2002), entre outros, alguns na área da literatura infanto-juvenil.

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