Piso ou teto de representatividade?

Pedro estudou em escola pública. Paulo estudou em escola particular. Eles querem entrar no mesmo curso na Universidade de São Paulo (USP) e, na primeira fase da Fuvest, obtiveram a mesma nota. No entanto, apenas um deles passou para a segunda fase.

Sabendo que a USP tem um sistema de ações afirmativas, você deve imaginar que foi Pedro, estudante de escola pública, quem passou. No entanto, entre 2019 e 2022, o sistema de ações afirmativas da USP aprovou muitos Paulos e deixou Pedros para trás.

Neste artigo, irei explicar o que acontecia e beneficiava candidatos de ampla concorrência em detrimento de candidatos vindos de escola pública e o que mudou em 2023, que fez com que isso não só deixasse de acontecer como proporcionou o vestibular mais inclusivo da história da USP.

Qual era o problema?

Anualmente, por volta de agosto, vestibulandos se inscrevem na Fuvest, um dos meios de ingresso na USP. Desde o vestibular 2019, quando a Fuvest passou a adotar reserva de vagas, os candidatos têm de optar por uma de três modalidades de concorrência: Ampla Concorrência (AC), disponibilizada a todos os candidatos; Ação Afirmativa EP, destinada a candidatos que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas brasileiras; e Ação Afirmativa PPI, destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas brasileiras.

Até 2022, candidatos concorriam apenas com outros candidatos que houvessem optado pela mesma modalidade de concorrência. Era essa regra que permitia que, em alguns casos, estudantes de ampla concorrência fossem aprovados para a segunda fase com notas inferiores a candidatos que faziam jus a ações afirmativas. A depender do número de candidatos em cada modalidade de concorrência e de vagas disponíveis, a nota de corte de cada modalidade poderia fugir do padrão esperado, em que modalidades mais abrangentes de concorrência teriam notas de corte mais elevadas.

Vejamos um exemplo prático, o ingresso no curso de ciências sociais em 2019. A nota de corte para candidatos de ampla concorrência foi de 36 pontos. A nota de corte para candidatos provenientes de escolas públicas foi de 40 pontos. 

Isso quer dizer que candidatos que estudaram em escolas públicas e que atingiram 39, 38, 37 e 36 pontos não foram aprovados. Mas, se um deles tivesse feito sua inscrição na modalidade de ampla concorrência – e todos têm o direito de optar por se inscrever nessa modalidade –, ele teria passado para a segunda fase do vestibular. 

Ou seja, estudantes de escolas públicas deixaram de ser aprovados pura e simplesmente por serem alunos de escola pública. Com isso, o sistema de reserva de vagas, em vez de atuar como um piso de representatividade, serviu como um teto. Se existisse a possibilidade de estudantes concorrerem em todas as modalidades de vaga a que tinham direito, como já ocorria nos vestibulares das demais universidades estaduais paulistas e passou a ocorrer na USP em 2023, esse problema não se manifestaria.

Como o problema se manifestou?

Em conjunto com Thiago Zambelan, verifiquei as notas de corte da primeira fase em todos os vestibulares da Fuvest desde 2019. Os dados sobre a segunda fase não são acessíveis, mas é possível supor que problemas semelhantes ocorram nesta etapa final e, vale ressaltar, os prejudicados pela regra na primeira fase sequer têm a chance de concorrer na segunda fase.

Os dados de 2021 disponibilizados não são precisos quanto a manifestação de alguma incongruência entre as notas de corte, então foco nos outros anos analisados (para mais detalhes, confira o levantamento realizado).

Em 2019, o problema foi bastante significativo, tendo se manifestado em 32 dos 110 cursos oferecidos na Fuvest, cerca de 30% do total. Em 2020 e 2022 esse número foi inferior, com três cursos cada. Entretanto, é importante frisar que mesmo se essa incongruência ocorrer em apenas um curso por ano, teríamos um quadro que iria em direção contrária ao que as políticas de ações afirmativas pretendem, visto que candidatos provenientes de escolas públicas teriam maiores dificuldades em serem aprovados em certos cursos.

Além disso, destaco que, em que pese eu tenha aqui exemplificado o problema com base em notas de ampla concorrência menores que de escola pública, essa não é a única incongruência possível. Também tivemos casos em que a nota de corte para alunos pretos, pardos e indígenas foi superior à de ampla concorrência e casos em que a nota de corte para candidatos pretos, pardos e indígenas foi superior à de candidatos que estudaram em escolas públicas. 

Este segundo caso é especialmente problemático porque, para se inscrever na ação afirmativa PPI, é necessário ter cursado o ensino médio em escolas públicas. Ou seja, tivemos casos em que estudantes provenientes de escolas públicas deixaram de ser aprovados para segunda fase apenas por terem se autodeclarado pretos, pardos ou indígenas. Esse não me parece ser o modelo de ação afirmativa que desejamos.

Como o problema foi solucionado?

Seria possível, em tese, que esse problema fosse solucionado com a correta alocação de vagas entre as três modalidades de concorrência. Essa variável – o número de vagas – é que explica a redução significativa de incongruências entre 2019 e os demais anos: a implementação de reserva de vagas na USP foi gradual e, aumentando anualmente as vagas destinadas às ações afirmativas, a tendência era a de que essas injustiças diminuíssem em frequência. 

No entanto, como frisei, não me parece aceitável um sistema de ações afirmativas que permita que um só candidato proveniente de escola pública seja prejudicado em relação a candidatos que estudaram em escolas privadas. Contar com uma adivinhação correta acerca da demanda de cada grupo por um curso não parece ser seguro para evitar essas injustiças. E a USP indica ter a mesma posição.

Ao regulamentar o vestibular de 2022, foi retirado o dispositivo que se repetiu nos anos anteriores e que indicava que candidatos concorriam apenas com aqueles que houvessem optado pela mesma modalidade de concorrência. Em seu lugar, a resolução passou a determinar que todos os candidatos concorrem às vagas de ampla concorrência e aqueles que fizerem jus a cada uma das ações afirmativas concorrerão também a essas vagas.

Com isso, não é mais possível que candidatos que fazem jus a ações afirmativas deixem de ser aprovados em detrimento de candidatos que estudaram em escolas particulares. E essa mudança contribuiu também com uma USP mais diversa.

Entre 2022 e 2023, o número total de vagas oferecidas pela USP não mudou. A distribuição dessas vagas entre cada modalidade de concorrência também continuou estável. No entanto, o número de alunos provenientes de escolas públicas, que, em 2021 e 2022, ficou basicamente estagnado, sendo de 51,8% e 51,7%, respectivamente, saltou em 2023, para 54,1%. Isso representa um salto de 5762 para 6.030 candidatos, ou um aumento de 268 ingressantes provenientes de escolas públicas – o sistema de reserva de vagas da Fuvest deixou de ser um teto e passou a ser um piso de representatividade.

Essa mudança é positiva e indica um processo de melhoria incremental das políticas de fomento à diversidade em instituições de ensino superior. No entanto, o trabalho em prol de um sistema de reserva de vagas em universidades públicas mais igualitário ainda não terminou. Inácio Bó e Adriano Senkevics compilaram dados que demonstram que problema semelhante ao que ocorria na Fuvest ocorre também no Sisu. Isso quer dizer que 224 mil outras vagas em 128 instituições públicas ainda padecem, em alguma medida, da injustiça aqui discutida. Felizmente, a experiência do vestibular de ingresso na USP de 2023 parece demonstrar que a solução para essa injustiça já existe.

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