Algemas, 3 aviões por semana, voo militar: como funciona a deportação sem e com Trump


Entenda como funcionam os voos de deportação, o que sempre aconteceu e o que pode ser novo sob Trump. Colombianos deportados chegam a Bogotá; afinal, o que sempre aconteceu e o que pode ser novo sob Trump?
Presidência da Colômbia via BBC
A tumultuada chegada a Manaus de 88 brasileiros deportados dos Estados Unidos na última sexta (24/01) levantou questões sobre se o uso de algemas é praxe ou configura abuso, como funcionam os voos fretados de deportação e se há acordo formal bilateral entre o Brasil e os EUA no tema.
Segundo o governo brasileiro, o voo encerrado em Manaus foi o 46º recebido pelo Brasil desde 2022 — e o primeiro no qual houve problemas neste intervalo de tempo.
No período, pouco mais de 9 mil brasileiros foram devolvidos ao Brasil — com frequência algemados e em voos fretados pelos EUA.
E embora tenha sido o primeiro sob a administração Donald Trump, não se pode dizer que algo tenha sido alterado neste voo especificamente por determinação da nova gestão republicana.
Leia a seguir como funcionam os voos de deportação, o que sempre aconteceu e o que pode ser novo sob Trump.
Algemas como prática comum
O uso de algemas, em pés e mãos, para adultos brasileiros durante os voos em aviões fretados para deportação pelos Estados Unidos é prática comum dos agentes do ICE, o serviço de alfândega e imigração dos EUA, que comandam esses voos.
Apesar dos recorrentes protestos da diplomacia brasileira contra o uso indiscriminado de correntes e algemas, as autoridades americanas costumam argumentar que a imobilização dos deportados é necessária para garantir a segurança do voo e da tripulação.
A praxe é que tais dispositivos sejam retirados antes do desembarque, até porque, da perspectiva legal do Brasil, os deportados não cometeram qualquer tipo de crime em solo pátrio.
“O uso das algemas, do acorrentamento inclusive na barriga, nos pés e nas mãos, é algo que é parte de como os voos do ICE são conduzidos e sempre foi assim, independente do governo. Normalmente, 20 minutos antes do pouso, os passageiros que estão sendo deportados são desacorrentados, as algemas são retiradas. Por isso que foi tão diferente e chocante ter visto os brasileiros em solo brasileiro ainda algemados”, afirmou à BBC News Brasil Gabrielle Oliveira, professora de educação e migração da Universidade de Harvard.
Segundo Oliveira, nesses voos há uma organização de filas de prioridade para uso de banheiro, por exemplo, momento em que os deportados seriam liberados das algemas.
Menores de idade, idosos e mulheres com crianças pequenas costumam ser poupados das algemas, mas a necessidade do uso ou não das correntes é subjetivo e fica a critério dos agentes encarregados da repatriação.
A BBC News Brasil apurou que, em 2021, durante o governo Biden, um adolescente brasileiro chegou a ser algemado pelo ICE em um desses voos, o que gerou protestos do Itamaraty.
Segundo o Itamaraty, o uso de algemas e correntes durante o voo não foi o principal problema no caso do avião que chegou recentemente a Manaus.
De acordo com diplomatas brasileiros envolvidos na investigação do assunto, a aeronave viajou em condições precárias e seu principal problema teria sido uma pane no sistema de ar condicionado, o que deixou a cabine extremamente quente.
Por conta disso, segundo o relato de passageiros, crianças e idosos passaram mal.
Apesar da situação e da reclamação, a tripulação não teria oferecido qualquer possibilidade de alívio ou conforto e planejava seguir viagem até Confins (MG).
Uma confusão se iniciou e mesmo contidos e algemados, os passageiros conseguiram acionar a porta de emergência da aeronave e o tobogã que permite a saída emergencial, momento em que autoridades brasileiras foram informadas do problema e passaram a intervir.
Um diplomata do Brasil que acompanha o assunto de perto afirmou que não seria surpresa se os americanos usarem o episódio para reforçar a necessidade do uso de algemas em deportados.
Sem acordo formal de deportação entre Brasil e EUA
Não existe atualmente um acordo bilateral formal em vigor, entre Brasil e EUA, que discipline a maneira como nacionais brasileiros serão deportados. O que há são conversas recorrentes entre as autoridades dos dois países e a troca das chamadas notas diplomáticas, missivas nas quais cada país registra o que espera que aconteça na situação e justifica suas posições.
Do lado brasileiro, a última dessas notas específicas sobre as condições de deportação foi enviada em 17 de setembro de 2021, ainda na gestão Bolsonaro, e afirmava que os nacionais deportados nesses voos “não serão submetidos ao uso de algemas e correntes, ressalvados os casos de extrema necessidade”.
Como extrema necessidade, o Itamaraty entendia riscos à segurança dos demais passageiros, de si mesmos ou dos integrantes do governo americano.
Dada a crise atual, o Brasil pediu explicações ao encarregado de negócios recém enviado a Brasília pelo governo Trump, Gabriel Escobar.
Segundo a BBC News Brasil apurou com o lado brasileiro, em uma conversa amistosa, Escobar e a secretária de Assuntos Consulares do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Márcia Loureiro, acertaram que apurarão com os seus cidadãos o que aconteceu no voo e, em um novo encontro, acertarão os detalhes para evitar repetição do problema.
Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil não veem na crise as digitais de Trump e tentam limitar o alcance do desgaste que a situação ainda pode gerar com a nova administração.
Segundo eles, o voo partiu de Alexandria, na Virgínia, apenas no terceiro dia útil de governo do republicano, o que indica que o fretamento da aeronave e a elaboração da lista de passageiros foi senão completamente, ao menos majoritariamente, feita ainda na gestão Biden, sem interferência dos republicanos.
Voo militar pode?
Ao menos desde 2022 o Brasil jamais recebeu brasileiros deportados em aviões militares dos EUA. O voo de sexta-feira foi feito em uma aeronave fretada de uma companhia comercial. Nas negociações feitas até hoje entre Brasil e EUA, nunca houve pedido ou menção de uso de aeronaves militares para tais fins.
Segundo um diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil, caso o governo Trump desejasse usar avião militar para trazer brasileiros de volta, isso teria que ser negociado de antemão entre os serviços diplomáticos. Ele não aceitou sequer especular que tipo de posição o Brasil adotaria em tal situação.
Voos de repatriação com avião militar aconteceram recentemente no Equador e na Colômbia, já sob Trump.
E no caso deste último país, as aeronaves militares teriam sido o estopim para a crise entre o presidente colombiano Gustavo Petro e o americano Donald Trump.
Petro não teria autorizado a aterrissagem de voos militares americanos com deportados da Colômbia, ao que Trump respondeu com tarifas e sanções. Cerca de doze horas mais tarde, a Colômbia recuou e autorizou o uso de aeronaves militares para repatriação de colombianos.
3 voos por semana?
Ainda durante a gestão do democrata Joe Biden, a diplomacia americana pediu que o Brasil aceitasse até 3 voos fretados de deportação por semana. Embora tenham obtido autorização para isso, as devoluções sob Biden jamais atingiram tal escala. O máximo visto nos últimos 3 anos, em média, foram dois voos por mês.
O fato de que o Brasil já tenha dado luz verde para uma grande quantidade de retornos pode servir aos interesses de Trump, que pretende realizar deportações em massa.
Operações de imigração têm sido feitas ao redor do país e a BBC News Brasil apurou que ao menos dois brasileiros já foram apreendidos pelo ICE nestas blitz, embora nenhum deles tivesse histórico criminal, tanto no Brasil, como nos EUA.
“Vamos passar a ver cada vez mais essas situações, de pessoas pegas porque estavam no local errado, na hora errada”, afirma a advogada Eloa Celedon, que atua com imigração nos EUA.
Imigrantes presos em Guantánamo?
É comum que antes de serem deportados, imigrantes sem documentos passem um período presos, para finalizar os processos judiciais ou esperar a disponibilidade de aeronaves para o trânsito.
As vagas nesses locais de detenção são limitadas e, em um anúncio que deve levar a questionamentos na Justiça, o presidente Trump afirmou nesta quarta (29/01) que assinará uma Ordem Executiva determinando que a prisão federal americana da Baía de Guantánamo, em Cuba, seja usada para acomodar imigrantes indocumentados em processo de expulsão do país.
Segundo Trump, o local teria condições de abrigar até 30 mil camas.
“Isso dobrará nossa capacidade (de acomodação de migrantes detidos)”, disse Trump. “E é um lugar do qual é difícil sair”.
Mas especialistas ouvidos pela BBC News Brasil sobre migração acreditam que a medida não deve prosperar, ou então se limitará a servir como encarceramento para imigrantes comprovadamente processados por crimes violentos cujos países de origem se recusem a recebê-los de volta.
“Honestamente, eu não acredito que ele vá mesmo mandar grandes números de imigrantes para lá, isso não deve acontecer assim”, afirma Celedon.
Historicamente, a prisão de Guantánamo foi usada para prender suspeitos de atos de terrorismo, depois dos ataques de 11 de setembro. Muitos dos prisioneiros jamais chegaram a ser julgados e diferentes governos americanos prometeram, mas nunca conseguiram, desativar o presídio.
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