Alienação fiduciária compartilhada: a ‘jabuticaba’ brasileira

A alienação fiduciária, tal como existe no Brasil, é única. Não há garantia idêntica à nossa em outro ordenamento. A origem e as inspirações desse modelo de garantia são controversas.

Apesar de a alienação fiduciária se assemelhar a um ou a outro modelo em determinados aspectos, Sílvio de Salvo Venoso destacou que é um instituto “original, não se amoldando com exatidão a qualquer outro”[1]. Da mesma forma, defendem Moreira Alves e Amaral Neto[2].

A alienação fiduciária não se iguala à forma encontrada em outros países, atualmente ou historicamente, sendo uma verdadeira “jabuticaba”. Trata-se de instituto típico do Direito Civil brasileiro que envolve a transferência da propriedade resolúvel de determinada coisa ao credor fiduciário. Quando implementada a condição estipulada, o fiduciário compromete-se a restituir a coisa ao fiduciante. Com a constituição da propriedade fiduciária, ocorre o desdobramento da posse, tornando-se o devedor fiduciante possuidor direto e o credor fiduciário possuidor indireto.

No Brasil, a alienação fiduciária surgiu em 1965, quando passou a viger a Lei de Mercado de Capitais (Lei 4.728/65), inicialmente restrita aos bens móveis. Nos anos seguintes, buscou-se uma garantia eficiente para os bens imóveis para que as situações de mora fossem solucionadas em tempo compatível com as necessidades do mercado e da economia[3].

Mais de trinta anos depois, em 1997, foi implementada a alienação fiduciária de bens imóveis (Lei 9.154/97). Afrânio Camargo destacou que a alienação fiduciária é uma garantia socializante em sua essência, pois “graças a ela é que se pode permitir que um indivíduo que não tenha dinheiro, mas que possa vir a ter, adquira coisas com crédito e possa utilizar-se dessas coisas pagando parceladamente com garantia para o credor”[4].

Atualmente, as previsões legislativas do ordenamento jurídico brasileiro implicam em um padrão estático das operações de crédito resguardadas por meio da alienação fiduciária, pois não autorizam a concessão de novos créditos vinculados à garantia originária, de forma simultânea.

Nesse sentido, em 2020 foi editada a MP 992/2020, que, dentre outras providências, permitiu o compartilhamento[5] da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel.  Essa alteração no instituto autorizou, temporariamente, que um único bem imóvel estivesse vinculado como garantia de mais de uma obrigação, de forma simultânea — diferentemente da alienação fiduciária tradicional.

Ocorre que a MP 992/2020, que vigeu durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, caducou em 12 de novembro de 2020, após o decurso do prazo de 120 dias, por não ter sido convertida em lei (artigo 62, §§3° e 7°, da Constituição Federal). Após essa data, as operações que haviam sido pactuadas com fulcro na MP, foram mantidas nos moldes em que se originaram, diante da ausência de Decreto Legislativo no prazo de 60 dias após o fim da vigência (§§ 3° e 11 do mesmo artigo).

Em 25 de novembro de 2021, o Poder Executivo apresentou o PL 4188/2021, que, dentre outras medidas, pretendeu regulamentar o “aprimoramento das regras de garantia”.

O referido PL, já em sua versão original, pretendeu permitir a extensão da alienação fiduciária de coisa imóvel. Assim, a propriedade fiduciária já constituída poderia ser utilizada como garantia de operações de crédito novas e autônomas, desde que o credor fiduciário de ambas as operações fosse o mesmo e inexistisse obrigação contratada com credor diverso em relação à qual o imóvel fosse objeto de garantia[6].

A extensão da alienação fiduciária pretendida pelo PL é capaz de conferir dinamicidade à alienação fiduciária em garantia e injetar crédito no mercado, refletindo de maneira considerável na economia nacional. Por outro lado, o PL prevê alterações em diversos dispositivos e mudanças consideráveis nas áreas mais diversas do Direito Civil[7].

No que se refere à extensão da alienação fiduciária em garantia, o PL não se debruça a fundo sobre a regulamentação, o que pode provocar insegurança jurídica, caso venha a viger sob essas condições. Pontua-se que o texto do projeto ainda sofrerá alterações.

Em 1° de junho de 2022, o PL 4188/2021 foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado[8], tendo sido distribuído sob a relatoria do senador Weverton Rocha (PDT-MA), que apresentou parecer favorável à matéria, com emendas. No momento, aguarda-se a inclusão em pauta para deliberação pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).

Atualmente, não há previsão que autorize a extensão da alienação fiduciária em garantia no Brasil, sendo necessário que se aguarde a deliberação final do Poder Legislativo e posterior remessa para sanção presidencial.

[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 418.

[2] MOREIRA ALVES, José Carlos. Da alienação fiduciária em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 45. AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro. Revista de Direito Civil, imobiliário, agrário e empresarial, v. 22, ano 6, 1982, p. 47.

[3] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pp. 58-59.

[4] DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Método, 2007, p. 38.

[5] A palavra “compartilhamento”, embora seja compreendida mais facilmente, não demonstra tecnicidade, tendo em vista que representa a consequência da “extensão” da garantia. Nesse sentido, a Senadora Soraya Thronicke apresentou a proposta de emenda n. 72 à MPV n. 992/2020, na qual propôs alteração da nomenclatura, visando a “aprimorar a concussão, o entendimento e a precisão do texto, evitando-se, dessa forma, insegurança jurídica que possa decorrer de sua intepretação futura”.

[6] Ambos os critérios foram formulados visando a resguardar a unicidade do credor.

[7] Confira-se a versão original do PL em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2112509

[8] Veja-se a versão final aprovada pela Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2183442

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