Conceitos que pegam e não pegam no Direito Administrativo

A partir do momento em que normas, institutos e conceitos jurídicos entram em vigor no mundo do Direito, presume-se que devem ser utilizados. Essa obrigatoriedade, contudo, não é sempre a realidade. Alguns comandos entram no esquecimento, por razões culturais, políticas, econômicas ou sociais que, em geral, são difíceis de explicar. Nem sempre a eficácia normativa corresponde à eficácia social (ou à efetividade).

Isso fica mais claro quando observamos alguns institutos que incorreram em baixo uso, a exemplo das avaliações periódicas de desempenho, por meio das quais se poderia retirar do cargo servidor público já estável (art. 41 inciso III da CF). Também foi o caso de alguns princípios gerais de proteção a direitos individuais positivados na Lei 13.874/19 (Lei de Liberdade Econômica). Há outros, porém, que ostentam eficácia social mais visível, ainda que seja possível questionar as interpretações que lhes são empregadas na prática, tais como os previstos na Lei 13.655/19 (nova LINDB).[1]

No primeiro grupo, será que não estariam as decisões coordenadas? Trata-se de instrumento contido na Lei 14.210/21, que acrescentou o art. 49-A à Lei 9.784/99, cujo conteúdo jurídico permite, grosso modo, a cooperação entre diferentes instituições públicas em processos de tomada de decisão complexas. Quase dois anos após a entrada em vigor da lei, no entanto, ainda não se tem notícias de decisões coordenadas de grande relevo para o Direito Administrativo.[2] Uma possível explicação para isso é que o art. 49-A §6º estabeleceu demasiadas vedações ao uso das decisões coordenadas, o que, na prática, pode gerar desestímulos ao administrador público.

Diante da necessidade de coordenação decisória e das dificuldades encontradas na moldura normativa das decisões coordenadas em âmbito federal, um instituto que pode vir a suprir essa lacuna é o processo de Solicitação de Solução Consensual (SSC), preconizado pela IN 91/2022 do Tribunal de Contas da União (TCU).

Cuida-se de instrumento que permite a aproximação entre diferentes instituições para que encontrem soluções conjuntas para problemas que individualmente não foram resolvidos, à semelhança das decisões coordenadas. O texto da norma indica os legitimados para instaurar o processo no TCU, prevê a constituição de uma comissão para propor meios de resolução da controvérsia e as etapas processuais para a revisão e aprovação de acordo entre as partes interessadas.

Algumas críticas podem ser feitas à SSC, a exemplo das seguintes: (i) o papel dos particulares fica restrito à sua oitiva durante os trâmites, não sendo eles legitimados para instaurar uma SSC ou mesmo compor a comissão que é constituída a partir dela; (ii) fomenta-se o controle ex ante da administração pública pelo TCU, algo que subverteria o seu papel institucional, que é o de controle ex post, conforme se extrai dos arts. 70 e 71 da CF; (iii) existirá uma fuga de outros meios consensuais de resolução de controvérsias, como as arbitragens e as câmaras de conciliação e mediação, notadamente a da AGU; (iv) tal poderia afigurar-se uma burla às limitações estabelecidas para o proferimento de decisões coordenadas, já que a SSC implica, em essência, a coordenação decisória entre instituições públicas federais; e (v) as SSCs representam um aumento de ingerência do TCU nos processos de tomada de decisão pública, sobretudo de agências reguladoras, já que institui um espaço para o tribunal atuar como mediador de praticamente todos os conflitos públicos na esfera federal.[3]

A despeito disso, a SSC teve uma adesão razoável pouco tempo depois de ser positivada. Os primeiros pleitos nesse sentido foram formulados pela ANTT, questionando o TCU acerca da possibilidade de alteração de projetos de infraestrutura ferroviária.[4] Ademais, o primeiro acordo fruto de uma SSC (“Acordo de SSC”) decorreu de provocação da ANEEL para rever contrato emergencial para fornecimento de energia elétrica, celebrado durante a crise hídrica, cujas tarifas estariam elevadas (Acórdão 1130).[5] E ainda há outros pleitos de SSC aguardando apreciação pelo TCU.

Existem ao menos duas razões para essa ascensão das SSCs. A primeira é que, considerando a IN 91/2022 do TCU, elas não possuem as mesmas restrições designadas em lei para as decisões coordenadas. A segunda consiste no fato de que o Acordo de SSC terá um selo de qualidade do controlador público, o que pode reduzir os riscos de o mesmo vir a questioná-la em momento posterior, algo não previsto para as decisões coordenadas.

Tudo isso indica um movimento em que as SSCs estariam ocupando o espaço antes direcionado às decisões coordenadas. O próximo passo será observar se esse fenômeno terá, ou não, os efeitos positivos que se espera ou se terminará apenas por ampliar a esfera de competências e prerrogativas do TCU sobre a administração pública federal, algo que a literatura jurídica questiona já de algum tempo.[6] A ver.

[1] MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Leis que Pegam e Leis que não Pegam: Sucesso da nova LINDB e ineficácia da Lei de Liberdade Econômica mostram inutilidade de opções legislativas apenas axiológicas. JOTA. 18/05/2021.

[2] Não significa dizer que haja nenhuma experiência pontual ou ainda em fase de elaboração, mas sim que, até o momento, a lei não teve, ao menos, os resultados ansiados, do ponto de vista prático.

[3] Uma crítica nesse sentido, em exame ao primeiro Acordo de SSC celebrado (Acórdão nº 1130), pode ser encontrada em: PALMA, Juliana. O TCU e sua Consensualidade Controladora Método Adequado de Solução de Conflitos ou Expansão de Competências Controladoras? JOTA, 28/06/2023.

[4] TCU, TCU Investe em Soluções Consensuais de Conflitos para Temas de Grande Relevância. 10/02/2023.

[5] TCU, Acórdão nº 1130/2023, Processo nº 006.253/2023-7, Plenário, Relator: Benjamin Zymler, j. 07/06/2023.

[6] Por todos, confira-se: ROSILHO, André. Tribunal de Contas da União: competências, jurisdição e instrumentos de controle. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

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