O que ocorre se descumpridas as requisições de informações das CPIs?

No último dia 29 de julho, foi divulgada a informação de que o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, negou a requisição da CPMI dos Atos de 8 de Janeiro – aprovada pelo colegiado nos termos do Requerimento 934/2023 – para que fossem fornecidas as imagens do Anexo II do Ministério da Justiça, do estacionamento desse edifício e do seu refeitório durante todo o dia 8 de janeiro de 2023.

Conforme o requerimento da CPMI, o exame do conteúdo mencionado possibilitaria compreender se havia contingente da Força Nacional de prontidão no Ministério da Justiça e o exato momento em que ocorreu o acionamento contra os ataques sofridos.

De acordo com a notícia, o ministro alegou que os arquivos não poderiam ser divulgados para preservar as investigações criminais em andamento. Eis o que se afirmou: “Esta decisão administrativa visa preservar a autoridade do Poder Judiciário no que se refere ao compartilhamento de provas constantes de Inquéritos com eventuais diligências em curso”.

Ocorre que o próprio Ofício 246/2023 – CPMI8, de 11 de julho, solicitou que, caso houvesse alguma dificuldade tecnológica ou se os arquivos estivessem resguardados por hipótese de sigilo legal, fosse contactada a Secretaria de Comissões nos canais indicados para que fosse disponibilizado link específico com vistas ao envio da documentação. Ou seja, a CPMI dispõe de tecnologia para a preservação do sigilo (cadeia de custódia).

Vale recordar ainda, como já escrito aqui, que as CPIs têm “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (art. 58, § 3º, da CF). De acordo com a Lei 1.579/62, com redação dada pela Lei 13.367/16, tais poderes de instrução incluem a possibilidade de determinação das diligências que a CPI reputar necessárias, como, por exemplo: 1) requerer a convocação de Ministros de Estado, 2) tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, 3) ouvir os indiciados, 4) inquirir testemunhas sob compromisso, 5) requisitar da administração pública informações e documentos, e 6) transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença (art. 2º). Trata-se esse de rol meramente exemplificativo.

Ciente de que todas as ações e reações que emanam de uma CPI são também políticas – até mesmo pela sua própria composição, que abarca maioria e minorias, governo e oposição – convém indagar: quais seriam as consequências jurídicas em abstrato frente à recusa de uma autoridade pública em prestar as informações requeridas por uma CPI?

Já em 1996, o ministro Paulo Brossard afirmava no HC 71.039: “Dificilmente a comissão poderia cumprir sua missão se, a todo momento e a cada passo, tivesse de solicitar a colaboração do Poder Judiciário (…) Se a comissão parlamentar de inquérito não tivesse meios compulsórios para o desempenho de suas atribuições, ela não teria como levar a termo os seus trabalhos, pois ficaria à mercê da boa vontade ou, quiçá, da complacência de pessoas das quais dependesse em seu trabalho”.

Por essa lógica, as CPIs têm autonomia para garantir a efetivação das suas decisões (autoexecutoriedade). Nesse sentido, por exemplo, as CPIs possuem competência para realizar diretamente medidas de busca e apreensão, sem necessidade de requerer previamente sua adoção junto ao Poder Judiciário, precisamente como reconhecido no referido HC 71.039.

Novamente nas palavras do ministro Paulo Brossard nesse julgado: “Ao poder de investigar corresponde, necessariamente, a posse dos meios coercitivos adequados para o bom desempenho de suas finalidades”. De fato, sendo a CPI uma forma de controle, seu poder de fiscalizar não pode ficar condicionado à “concordância” do Poder Executivo que está sendo investigado.

No MS 21.872 o STF voltou a reconhecer a possibilidade de a CPI do Orçamento determinar busca e apreensão e também o STJ, no HC 3.985, já reconheceu esse poder às CPIs e, consequentemente, a licitude das provas advindas dessa providência.

Nada obstante, a maior parte das CPIs opta por não tomar essa providência. A busca e apreensão é assunto delicado dentro das CPIs. Há parlamentares que preferem não adotá-la sob qualquer hipótese, ante a dificuldade dos padrões de prudência e moderação. Ocorre que, se não adotada a diligência coercitiva, o poder de investigação da CPI pode acabar se tornando ilusório.

A existência de sigilo sobre a informação não é empecilho e essa circunstância não se confunde com a cláusula de reserva de jurisdição do art. 5º, inciso XII, da CF, que só incide sobre a comunicação de dados (informações dinâmicas), não alcançando as informações estáticas armazenadas. Nesse sentido, por exemplo, confira-se o HC 444.024.

Assim como o caráter sigiloso não justifica a recusa dos pedidos da CPI, a alegação de preservação da autoridade do Poder Judiciário tampouco se presta a tal função, na medida em que inexiste qualquer ordem judicial específica proibindo que o Poder Executivo envie as referidas imagens à CPMI. Pelo contrário, como comentado aqui, existe uma decisão do STF determinando a quebra do sigilo das imagens do Palácio do Planalto.

O que justificaria que se proceda de forma diferente em relação às imagens do Ministério da Justiça?

Os inquéritos em curso do STF não servem como escusa para que as autoridades solicitadas se vejam desobrigadas de cumprir para com seus deveres legais. Os poderes de investigação do Judiciário e das CPIs não são excludentes. A alegação de suposta preservação de investigação judicial sobre os fatos automaticamente caracteriza empecilho à investigação parlamentar, quando essas duas instâncias inquisitoriais deveriam coexistir harmonicamente ante a independência que provém do princípio da separação de poderes do art. 2º da CF.

Ainda quanto aos arquivos com as imagens, não necessariamente a diligência coercitiva da CPMI implicará a “apreensão” (isto é, a custódia física), podendo-se limitar apenas à “busca”, isto é, tão só à cópia (inclusive parcial) dos dados contidos nos servidores, computadores, drives de backup, nuvens ou outras mídias, com vistas à obtenção das informações indispensáveis aos trabalhos da CPI, haja vista que os dados obtidos constituirão elementos de convicção, constatação e evidência de natureza probatória.

Nesse caso, seria necessária a expedição de mandado pela CPI, cujos requisitos, de acordo com o art. 243 do CPP, são: 1) a indicação, da forma mais precisa possível, do lugar onde será a diligência, com os endereços; 2) os motivos e os fins da diligência; 3) a subscrição e assinatura pela autoridade que o expedir, no caso, o presidente da CPMI dos Atos de 8 de Janeiro. A execução da medida deve seguir o disposto nos arts. 241 e seguintes do CPP.

Dessa forma, a busca e apreensão é uma medida possível diante da recusa em atender ao pedido de uma CPI. Não se tratando de busca domiciliar (CF, art. 5º, inciso XI), que está sob reserva de jurisdição, a diligência poderia em princípio ser adotada em um prédio público como o Ministério da Justiça.

Do arcabouço normativo apresentado até aqui, vê-se que existe obrigação legal de fornecer os dados solicitados por parte da autoridade solicitada por um órgão como a CPI. Inclusive, o art. 58, § 3º, da CF, ao conceder às CPIs poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, equiparou suas solicitações e pedidos de informações a ordens judiciais.

Dessa forma, a conduta de recusar as solicitações formuladas no âmbito de uma CPI incorre em abstrato nos crimes de desobediência (art. 330 do CP) e de obstrução de investigação (art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/2013).

Em se tratando de ministro de Estado, este pode ser convocado pela CPI para prestar, pessoalmente, informações (no caso explicar o porquê do não fornecimento das imagens solicitadas), com base no art. 50, caput, da CF, e do art. 2º da Lei 1.579/1952, com redação dada pela Lei 13.367/2016.

Por último, recorde-se que o art. 50, § 2º, da CF, juntamente com a Lei 1.079/1950, art. 13, nº 4, estabelecem que importa crime de responsabilidade dos Ministros de Estado a recusa ou o não-atendimento no prazo de 30 dias, dos pedidos de informações por escrito do Congresso Nacional, bem como a prestação de informações falsas.

A mesma Lei 1.079/1950, art. 14, ainda prevê que é permitido a qualquer cidadão denunciar o ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados.

Bem, tudo o que se acaba de explicar é o que diz o direito na teoria e abstratamente, mas, como essa coluna já apontou várias vezes, tudo isso por vezes é muito diferente do que as autoridades políticas fazem na prática e concretamente. Com frequência, as consequências postas pelo direito como “possíveis” são classificadas pela política como “remotas” ou “improváveis”. 

Então, convém aguardar para ver se a recusa de prestar as informações requeridas por CPMI com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais ensejará alguma das repercussões jurídicas elencadas acima ou se o fato se dará simplesmente por consumado em razão de alguma composição política com o Poder Executivo ou renúncia momentânea de atribuições por parte do Poder Legislativo.

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Nesta primeira semana de agosto a Defensor Legis completa três anos. Até aqui já foram mais de 80 textos trazendo conteúdo e opinião jurídica sobre o universo do Congresso Nacional, CPIs, orçamento, elaboração das leis, imunidades parlamentares, e tudo mais que os leitores costumam encontrar aqui. É bastante trabalhoso manter a coluna, mas também é gratificante ouvir de alunos, professores e operadores do direito interessados no universo parlamentar que este espaço se tornou leitura relevante. Se nem todas as vezes para concordar, sempre para aprender algo, um detalhe desconhecido ou um ponto de vista diferente. Um dos feedbacks mencionou que a coluna, por alguns dos textos aqui divulgados, é uma espécie de “enfant terrible” entre constitucionalistas. Ante tudo isso, só resta agradecer novamente pelo espaço e por tantos leitores atenciosos, e prometer continuar escrevendo!

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