Google vs. Senacon: o PL das Fake News pode piorar sua internet?

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“O PL das Fake News pode piorar sua internet.” Essa é a frase que constava na página principal do Google que, aliás, nada tinha a ver com a data comemorativa em que foi publicada: o feriado do dia do trabalhador, 1º de maio. Frase que foi substituída em seguida por “PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira”.

Essas manifestações reproduzem uma surpreendente (para não dizer desesperada) reação do Google, ao utilizar sua própria plataforma de busca, contra a tramitação do PL 2630/2020, que pretende regular a atuação das plataformas no Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo mundo afora.

Além desses fatos, a plataforma está sendo acusada de manipular seu buscador justamente para fomentar a contrariedade ao projeto de regulamentação das redes, ou seja, a favor de seus próprios interesses, privilegiando notícias e artigos críticos ao projeto, ao mesmo tempo em que estaria omitindo as posições favoráveis à proposta.

O primeiro potencial problema dessa reação inusitada do Google é que a plataforma é considerada hoje uma empresa “quase-monopolista” no mercado de busca online, já que chegou a deter impressionantes 98,88% de market share (96,57% nos últimos 12 meses até março de 2023), como pode ser visto abaixo:

Buscadores mais usados no Brasil em 2022

Buscador Market share Tráfego mensal
1. Google 98,88% 4,481 bilhões
2. Yahoo! 0,5% 22,68 milhões
3. Bing 0,39% 17,87 milhões
4. DuckDuckGo 0,21% 9,309 milhões
5. Ask 0,02% 882 mil

Fonte: SimilarWeb

Essa superdominância, por si só, já colocaria o Google em uma situação de máxima cautela sobre os próprios atos, já que o potencial de dano ao mercado e ao consumidor seria proporcional ao tamanho da plataforma. A internet, ao mesmo tempo em que serviu à criação de um mercado global independente do fator territorial, passou a ser veículo de plataformas quase-monopolistas. As gigantes Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, conhecidas pela sigla GAFAM, dominam hoje o mercado digital. Estas mesmas empresas, antes consideradas startups, passam agora a estender seu poder de mercado para a economia real, por meio da internet das coisas e para mercados relacionados com a sua atuação predominante, dominando o mercado de dados. Mas o que mais preocupa, no momento, é a capacidade de manipulação informacional fruto dessa superdominância, e é justamente isso que o PL das Fake News objetiva combater.

Esse processo de superdominância é agravado por características próprias da economia digital, caracterizada por efeitos diretos e indiretos de economia de rede, isto é, uma situação em que, quanto maior o número de usuários de um dado serviço, maiores os benefícios e a capacidade de uma plataforma ampliar sua posição dominante para níveis de monopólio ou de quase-monopólio.

Outra característica é a modularidade que tem permitido a essas mesmas plataformas criarem e recriarem seus próprios mercados, expandindo sua superdominância para outros segmentos, mercados relacionados e até para a economia real, em especial, no contexto da Indústria 4.0 que tem promovido justamente maior integração entre economia real e virtual (internet das coisas). Com mais recursos, estas mesmas plataformas conseguem adquirir negócios nascentes e promover as chamadas killer acquisitions (estratégia em que o incumbente adquire empresas inovativas para descontinuar seus projetos) e, assim, ampliar ainda mais a dominância nos mercados.

As plataformas que logram êxito em desenvolver, de forma pioneira ou de modo mais estratégico, estes mercados tendem a ser aquelas que também conquistarão a maior parte desse mercado. Isso porque existem efeitos indiretos que refletem uma dada relação estabelecida de interdependência e complementaridade, especialmente, entre demandantes, relação esta que é retroalimentada e reforçada pelos próprios incumbentes (proprietários das plataformas), em benefício próprio.

Os efeitos de rede (diretos) podem também ser caraterizados pela existência de expressiva economia de escala do lado da demanda. Nesses casos, o líder do mercado assume um poder de superdominância nos setores em que atua e nos segmentos relacionados que dificilmente poderá ser contestado por concorrentes. Nesse passo, a responsabilidade sobre o conteúdo veiculado passa a ser maior e requer sim o máximo cuidado por parte dessas plataformas. Por tal motivo, tem-se utilizado a expressão winner take all (o vencedor leva tudo) para estas situações trazidas pela economia tecnológica e que são representadas pela capacidade de reversão dos custos marginais, isto é, pelo barateamento progressivo dos custos na atuação dessas plataformas, diferentemente do que ocorreria na economia tradicional.

Tais fatos sedimentam ainda mais o poder de mercado desses players, dificultando ou mesmo inviabilizando a concorrência. Em suma, ao mesmo tempo em que as grandes empresas do setor de tecnologia ficam cada vez maiores, os lucros das companhias tendem a aumentar na mesma proporção e o poder de manipulação informacional especialmente via algoritmos  é enorme. Essas plataformas tem o poder de manipular o mercado de dados, monetizar tais informações e influenciar as preferências dos usuários nos mais variados segmentos (político, social ou econômico).

E o que a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, pode fazer para coibir estes abusos? No Parecer 00299/2021, a Advocacia-Geral da União, por meio da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, concluiu que as sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor são cumuláveis com as do art. 12 do Marco Civil da Internet, desde que os fatos objeto de investigação sejam também enquadrados pela Senacon nos arts. 10 e 11 do MCI.

Trata-se de importante ferramenta que não vinha sendo usada pelo órgão em virtude de dúvidas quanto à possibilidade de lançar mão de punições muito mais severas que as previstas no CDC – com patamar sancionatório incomparavelmente maior, vale dizer, a multa do Marco Civil da Internet é notoriamente mais significativa que a prevista no diploma consumerista.

Isto é, a Senacon pode advertir, suspender temporariamente as atividades das plataformas que cometam abusos, aplicar multas de até 10% sobre o faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção ou até proibir o exercício das atividades desses grupos, além das sanções já previstas no próprio CDC. São reprimendas mais que suficientes para frear os abusos cometidos pelos gatekeepers.

Nesse sentido, a Senacon adotou, já no dia seguinte às manifestações do Google, uma medida cautelar contra a plataforma para que se abstenha de censurar nas comunidades e aplicações mantidas pela plataforma digital posições divergentes da posição editorial da empresa; abstenha-se de privilegiar nas comunidades e aplicações mantidas pela plataforma digital posições convergentes com a posição editorial da empresa; que a mesma sinalize os conteúdos publicados no âmbito dos seus serviços; que informe os consumidores sobre possíveis conflitos de interesses que afetem a prestação de serviços; que informe qualquer interferência no sistema de indexação de buscas relativos ao debate do PL 2630, bem como para que veicule contrapropaganda para informar devidamente os consumidores o interesse comercial da empresa no que concerne à referida proposição legislativa sob pena de multa diária de R$ 1 milhão por hora por descumprimento (Processo Administrativo 08012.001554/2023-00), demonstrando que o órgão está atento e vigilante para coibir os abusos das big techs.

Independente de qualquer crítica ou posicionamento sobre o PL das Fake News, que não é objeto deste artigo, a verdade é que o Google pode ter ido longe demais ao utilizar seu poder de mercado justamente em uma plataforma que se pretende, tanto quanto possível, neutra, objetivando atacar um projeto de lei que lhe é desfavorável. Fruto de ingenuidade ou não, a verdade é que a conduta em si pode ter sido um atestado comprobatório dos potenciais abusos que estão a ser perpetrados pelas grandes plataformas na internet no Brasil, e a Senacon tem ferramentas mais que suficientes para investigar e coibir tais práticas, lançando mão especialmente das punições previstas no Marco Civil da Internet.

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