Resposta ao artigo “Um pouco da história de Gaza”

O muro de separação erguido por Israel em 2002 divide Belém de Jerusalém, dificultando o acesso dos palestinos a locais sagrados e afetando a vida cotidiana dos residentes.Reprodução: Flipar

Por William Douglas e Miriam Sanger

O senador americano, sociólogo e diplomata norte-americano Daniel Patrick Moynihan (1927–2003) disse certa vez: “Você tem direito à sua própria opinião, mas não aos seus próprios fatos”. Por isso, e também por respeito ao público, é importante contrapor ao menos alguns dos equívocos importantes cometidos pelo articulista Guga Chacra em seu texto Um pouco da história de Gaza, publicado em 27 de fevereiro no jornal O Globo.

Chacra não contou “um pouco da história de Gaza”, mas “pouco da história de Gaza”, deixando de registrar ou confundindo dados importantes.

1. “Seus mais de dois milhões de habitantes são, em sua maioria, descendentes de refugiados que foram expulsos ou deixaram o atual território israelense na guerra de 1948. Uma outra parte seria de cidades e vilas como Gaza e Khan Yunis.”

Guga, você está repetindo números fornecidos por terroristas. Não há censos demográficos conduzidos ou acompanhados por organizações internacionais desde que o Hamas tomou o poder em Gaza, em 2007. O número de habitantes (e o de mortos em conflitos) é proveniente do Hamas e sabidamente “inflacionado”, uma vez que o montante anual da ajuda humanitária é calculado “per capita”.

Com relação à procedência dos atuais habitantes de Gaza: segundo o cientista político e diplomata americano Ralph Bunche, que participou das mediações do cessar-fogo entre 1948 e 1949 (e por elas recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1950), apenas 17% dos árabes que deixaram o território que viria a se tornar Israel instalaram-se em Gaza. A maioria deles (32%) deslocou-se para o que hoje é a Cisjordânia, quase 19% para a Jordânia, e os demais 32% para Líbano, Egito e Iraque. Os nomes das grandes famílias em Gaza evidenciam sua origem, a exemplo de Masarwah (Egito), Al-Hijazi (Arábia Saudita) e Sidawi (Sídon, no Líbano).

A maior parte deles havia chegado à região em busca de trabalho apenas dois ou três anos antes, na esteira da imigração judaica. Depois de 1948, todos – nativos e residentes temporários – foram indiscriminadamente enviados pela Liga Árabe para campos de refugiados. O primeiro presidente da Organização para a Libertação da Palestina, Ahmad al-Shukeiri, disse então: “Os Estados Árabes não vão integrar os refugiados palestinos porque a integração seria um lento processo de liquidação do problema palestino”. A UNRWA, braço da ONU que atende exclusivamente aos palestinos, reconheceu como refugiados todos aqueles que viviam na região a partir de 1946 (ou seja, um ano antes da própria partilha do Mandato Britânico) e também todos os seus descendentes. Ou seja, até mesmo bisnetos daqueles que viviam na região a partir de 1946 são considerados pela ONU como refugiados. Eles somam hoje mais de 7 milhões de pessoas e, em nome delas, pleiteia-se o retorno a Israel (e não a um futuro Estado palestino), cuja população total é de 10 milhões de pessoas. Os líderes palestinos nunca esconderam de ninguém que seu objetivo é, ainda hoje, ganhar a guerra contra Israel por meio da demografia. Em tempo: Khan Yunis ou Gaza são cidades localizadas na própria Faixa de Gaza e, assim, sua frase faz pouco sentido.

2. “Até 1967, a Faixa de Gaza ficou nas mãos do Egito. Naquele ano, em uma nova guerra, Israel passou a ocupar e, posteriormente, a colonizar o território.”

Guga, a partilha do Mandato Britânico foi declarada em novembro de 1947 para criar um Estado árabe e outro judaico na região. Israel, embora insatisfeito com a área concedida, aceitou a oferta e declarou sua independência em maio de 1948. Isso gerou um ataque conjunto dos exércitos do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque. Ao final dessa guerra, a Faixa de Gaza passou a ser governada pelos egípcios e assim permaneceu até a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando, novamente, Estados árabes se uniram para aniquilar Israel. O Egito perdeu Gaza nessa guerra, a qual ele mesmo começou. Mais tarde, o Egito assinou com Israel o acordo de paz, mas negou-se a reassumir o controle de Gaza. Essa atitude do Egito diz muita coisa: onde está a solidariedade árabe?

3. “O cenário mudou no final dos anos 1980, quando os palestinos passaram a se levantar contra a ocupação, no que ficou conhecido como Intifada.”

Guga, faltou explicar em seu texto que o “levante contra a ocupação” ao qual você se refere não foi simplesmente uma sequência de manifestações, como seria em outros países, mas sim uma violenta onda de atentados dentro de Israel; cerca de 1,5 mil civis israelenses foram mortos por homens-bomba em ataques a restaurantes, bares, danceterias, ônibus etc. Um banho de sangue absolutamente traumático para Israel.

4. “Os palestinos locais, em muitos casos, trabalhavam em Israel. Não possuíam cidadania, mas havia uma relativa coexistência.”

Guga, por que os cidadãos de Gaza, que não admitem nem ao menos o direito de Israel existir, teriam cidadania israelense? Importante ressaltar que nem todos os árabes se opuseram à criação de Israel: 150 mil optaram, no momento da fundação de Israel, por se tornar cidadãos israelenses. Representavam então, e continuam representando hoje, mais de 20% da população de Israel, cerca de 2 milhões de pessoas que desfrutam de plenos direitos civis e são parte integral da sociedade israelense.

5. “Ao fim da Segunda Intifada, em 2005, o então premiê Ariel Sharon decidiu tirar os assentamentos de Gaza, e o território ficou nas mãos da Autoridade Palestina, embora Israel tenha mantido o controle das fronteiras.”

Guga, de fato, em 2005 Israel decidiu sair unilateralmente de Gaza. Retirou de lá tudo: população, exército e até mesmo corpos judeus enterrados nos cemitérios (hoje está claro também para o mundo que, para os palestinos, corpos são objeto de barganha e extorsão). Quanto à sua citação do “controle das fronteiras”, o que deveria fazer um país cuja população vizinha diariamente o ameaça de aniquilação? O Egito também protege (e como!) sua fronteira com Gaza. Importante lembrar também que o controle das fronteiras entre Israel e Gaza tornou-se compreensivelmente mais rígido depois das sangrentas Intifadas. Imagine como está agora, depois do 7 de outubro…

6. “Uma rápida guerra civil levou o Hamas ao poder.”

Guga, esta informação está equivocada: o Hamas foi eleito pelo povo palestino. Nas eleições parlamentares realizadas após a retirada de Israel, em 2006, o partido conquistou a maioria das cadeiras, com 44% dos votos. O Hamas, após ter sido eleito, eliminou seus adversários, que foram presos ou executados. Muitos foram lançados do alto de edifícios, enquanto outros conseguiram fugir e encontraram refúgio em Israel.

Por fim, vale dizer que, desde 2007, quando tomou o poder, o Hamas nunca convocou eleições. O mesmo, aliás, ocorre com a Autoridade Palestina, que governa os palestinos na Cisjordânia. Seria ótimo ouvir um pouco seus protestos contra essas ditaduras.

7. “Nos anos seguintes, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, incentivou o Catar a financiar o Hamas para investir na infraestrutura de Gaza. Ele avaliava que o Hamas teria deixado de lado o radicalismo para se concentrar na administração de Gaza.”

Guga, de fato, Israel acreditou que, oferecendo a tão desejada autonomia aos palestinos e lhes propiciando apoio econômico, inclusive aprovando vistos de trabalho para 20 mil trabalhadores palestinos de Gaza em Israel, fornecimento de água e de energia, o território poderia se transformar em uma Singapura. Quem poderia prever que as lideranças palestinas a transformariam, em vez disso, em uma base militar iraniana? Ou que ignorariam por completo as necessidades de sua população para investir a maior parte da ajuda financeira que recebem em terrorismo? Vale lembrar: no dia anterior à invasão do Hamas, em 6 de outubro de 2023, não havia um só soldado israelense em Gaza, enquanto a população civil no sul de Israel era alvo de mísseis lançados pelo Hamas dia após dia.

8. “Concordo que a questão palestina não seja a maior prioridade da Arábia Saudita. Mas sempre foi um tema relevante para Riad.”

Guga, a questão palestina não está entre as prioridades de nenhum país árabe. Eles falam muito nos palestinos, mas nada fazem por eles. Vale lembrar que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, em atitude louvável, não estão dispostos a participar do esforço financeiro de reconstrução de Gaza enquanto o Hamas estiver no poder.

Em suma, Guga, perdoe-nos a crítica, mas não é aceitável que você desinforme o público com dados equivocados ou descontextualizados. Contar a verdade, toda a verdade, é a única forma de permitir que o problema possa ser compreendido e, queira D’us, corrigido.

William Douglas é professor de Direito Constitucional. Miriam Sanger é jornalista, baseada em Israel desde 2012.

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