Coração do Faustão, acesso igualitário ao SUS e proibição de comércio de órgãos

O Brasil foi surpreendido nesta semana pelo agravamento do estado de saúde do apresentador Fausto Silva, o Faustão. Boletim médico divulgado pelo hospital privado onde ele está internado informa que houve agravamento do quadro de insuficiência cardíaca e que, por isso, a cirurgia de transplante de coração passou a ser indicada como o tratamento terapêutico mais adequado para o seu quadro clínico.

O comunicado da equipe médica que cuida do apresentador informou ainda que “Fausto Silva já foi incluído na fila única de transplantes, que leva em consideração, para definição da priorização, o tempo de espera, a tipagem sanguínea e a gravidade do caso”.

A publicidade do caso clínico de Faustão lança luzes para dois princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que merecem ser melhor compreendidos e, mais ainda, protegidos no debate público: o princípio do acesso igualitário aos serviços do SUS (CF, art. 196); e o princípio de vedação de comércio de órgãos, tecidos e substâncias humanas no Brasil (CF, art. 199, § 4º). 

Casos como o do apresentador podem representar ao mesmo tempo uma oportunidade – de esclarecer os serviços do SUS e seu espírito republicano – ou um risco – de colocar em dúvida estes princípios, na medida em que “por ser rico” o apresentador poderia “furar a fila” ou “comprar” sua solução terapêutica.

Acesso igualitário ao SUS 

A Constituição Federal de 1988 estabelece no caput do seu art. 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à igualdade. Nesse sentido, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (Art. 5º, I, da C.F.).

Trata-se aqui do princípio da igualdade perante a lei e da igualdade em direitos. O princípio protege a igualdade formal perante a lei face às desigualdades fáticas perante o mundo real. Não importa se somos diferentes em termos de cor, gênero, etnia, riqueza etc. O que importa é que, em uma República, a igualdade de todos os cidadãos perante as leis e o Estado é princípio fundamental, que protege os cidadãos contra discriminações ou privilégios de quaisquer tipos. 

O direito à saúde integra um sistema global de proteção dos direitos humanos e, como bem apontado pelo professor Fabio Comparato, “para o sistema de direitos humanos, a distinção entre desigualdades e diferenças é de capital importância. As primeiras referem-se a situações em que indivíduos ou grupos humanos acham-se juridicamente, uns em relação aos outros, em posição de superioridade-inferioridade; o que implica a negação da igualdade fundamental de valor ético entre todos os membros da comunhão humana. Por isso mesmo, a desigualdade constitui sempre a negação da dignidade de uns em relação a outros. As diferenças, ao contrário, são manifestações da rica complexidade do ser humano”.   

Na aplicação do direito à saúde, a aplicação do princípio da igualdade abrange as ações e serviços públicos de saúde de todos os tipos, sejam eles de prevenção, de proteção ou de recuperação da saúde. O princípio da igualdade e da não discriminação norteia as ações e serviços públicos de saúde, bem como os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS. O art. 7º, inciso IV da Lei 8.080/90 dispõe expressamente ser um princípio do SUS a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.

Nesse sentido é que a Constituição determina, em seu art. 196, ser dever do Estado assegurar o acesso igualitário às ações e serviços de saúde, leia-se, acesso igual, isonômico, sem diferenças. O princípio da não discriminação deve ser observado em todas as ações e serviços de saúde, mas sobretudo pelas ações e serviços públicos. Ele exige que o Estado elabore e execute políticas públicas de saúde que não representem privilégios para grupos sociais ou coletividades específicas. O acesso igualitário exige, ainda, que as ações e serviços de saúde não contenham quaisquer tipos de preconceitos, sejam eles em razão de raça, cor, sexo, orientação sexual, opção religiosa, cultural, ideológica, e, especialmente, por motivos econômicos. 

Acesso igualitário e fila dos transplantes

A Lei 9.434/97 organiza o sistema de transplantes em observância ao princípio da igualdade, permitindo o cruzamento de doadores e receptores por meio de uma central de transplantes (art. 13). O Decreto 9.175/2017 regulamenta o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) como instância responsável pelo controle e pelo monitoramento dos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano realizados no Brasil. As atribuições do SNT incluem ações de gestão política, promoção da doação, logística, credenciamento das equipes e hospitais para a realização de transplantes, definição do financiamento e elaboração de portarias que regulamentam todo o processo, desde a captação de órgãos até o acompanhamento dos pacientes transplantados.

A Central Nacional de Transplantes articula o trabalho das centrais estaduais e provê os meios para as transferências de órgãos entre as unidades da Federação, com vistas a contemplar as situações de urgência, bem como melhorar o aproveitamento dos órgãos captados.

A fila de transplantes no Brasil representa um dos melhores exemplos de aplicação prática do acesso igualitário ao SUS, na medida em que todos, sem distinção de qualquer espécie (inclusive renda ou fama), entram na mesma fila e aguardam a sua vez. No regramento jurídico nacional atual, não há possibilidade de um cidadão “furar fila” ou “pagar” para ter acesso acelerado ao órgão que necessita no âmbito do SUS.

A situação médica de Faustão irá orientar o seu lugar na fila, mas o debate público já está ocorrendo sem grandes cuidados com as nuances da gestão da fila, que deve levar em conta, além da ordem de entrada na fila, critérios estabelecidos pela legislação, notadamente pelo art. 35 do Decreto 9.175: “a alocação de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano observará os critérios de gravidade, compatibilidade, ordem de inscrição, distância, condições de transporte, tempo estimado de deslocamento das equipes de retirada e do receptor selecionado e as situações de urgência máxima”.

O fato de um cidadão famoso e milionário ser obrigado a entrar na fila do SUS para transplantes vem causando intensos debates na mídia e nas redes sociais, o que demonstra o ainda frágil grau de maturidade da República do Brasil, que ainda se espanta ao ver que a regra de que todos são iguais perante a lei ainda pode valer nesse combalido país. O andar da fila do transplante de coração e o tempo que irá durar até que o apresentador seja contemplado com um doador compatível é incerto, já que depende de variáveis não estáveis. De outro lado, se optar por fazer o procedimento no Brasil, Faustão será atendido pelo SUS, de forma gratuita, mediante financiamento público do SUS.

Mesmo com esse regramento claro, transparente, lógico e absolutamente técnico que rege a fila de transplantes no Brasil, ainda assim, vemos notícias sendo divulgadas para dizer que Faustão poderá fazer o transplante nos Estados Unidos por meio do pagamento de mais de R$ 8 milhões naquele país. A informação é que, lá, a fila demoraria menos. Será?

Seja como for, a decisão caberá ao apresentador e seus médicos, e deseja-se o melhor desfecho possível para este delicado quadro clínico. Sorte a do apresentador ter condições financeiras para arcar com o eventual custo da opção de ir buscar o transplante fora do Brasil. 

O que fica claro, desde já, é que os desdobramentos do caso certamente irão oferecer importantes elementos para avaliarmos com cuidado de que forma a República brasileira protege o princípio da igualdade e, ainda, de que forma as desigualdades econômicas se refletem no acesso à saúde. 

Proibição de qualquer tipo de comércio de órgãos, tecidos e substâncias humanas

Outro tema suscitado com o delicado quadro clínico de Faustão é a proibição, no Brasil, do comércio de órgãos, tecidos e substâncias humanas. A Constituição protege a integridade da pessoa humana de forma contundente, sendo que o art. 5º, III, dispõe que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. 

À luz desse dispositivo, a integridade física e mental do ser humano fica juridicamente protegida contra eventuais tratamentos médicos que podem ser caracterizados como tortura ou desumanos ou degradantes, tais como a extração comercial de órgãos, tecidos ou substâncias humanas de um paciente para transplantar em outro paciente. 

Foi, portanto, com esse mesmo propósito de assegurar a integridade física e mental da pessoa humana que a Constituição vedou a comercialização do sangue e dos seus derivados e condicionou a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas aos requisitos previstos em legislação específica. Dispõe o art. 199, §4º, da CF: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”. 

A Constituição tratou de vedar expressamente a comercialização do sangue e de seus derivados, visando resguardar a dignidade humana. Entenderam os constituintes de 1988 que a possibilidade de comercialização do sangue poderia criar um mercado perigoso, sobretudo no Brasil, país infelizmente ainda repleto de miséria e desigualdades sociais, campo fértil para todo o tipo de aberração comercial do corpo humano.

O SUS, a República e as desigualdades sociais

O caso de Faustão é uma oportunidade importante para reflexão sobre a necessidade de fortalecimento do SUS e da República brasileira, nos oferendo a chance de reafirmar nosso compromisso com um sistema público, universal, de acesso igualitário e financiado pela sociedade brasileira de forma solidária, bem como com o princípio republicano que torna todos os brasileiros cidadãos iguais em direitos e deveres.

Na expectativa que o apresentador tenha a possibilidade de obter um atendimento tempestivo e resolutivo dentro do SUS, fica desde já o agradecimento pela sua coragem de ter publicizado seu problema de saúde, nos possibilitando aprender um pouco melhor sobre o SUS e sobre o Brasil.

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