Curitiba usa reconhecimento facial como ferramenta na segurança pública sem ter regulação específica: ‘Sociedade de controle’, critica especialista

Câmeras na rodoviária da capital são usadas para reconhecer procurados pela Justiça e monitoramento de entradas e saídas da cidade ajuda a identificar veículos irregulares, por exemplo. Câmera de segurança em Curitiba
Maurílio Cheli/SMCS
Câmera de segurança da Prefeitura de Curitiba
Hully Paiva/SMCS
A Prefeitura de Curitiba usa o reconhecimento facial como uma ferramenta da segurança pública mesmo sem lei municipal específica regulando o uso da tecnologia, o que tem levantado críticas entre especialistas no assunto.
Quem circula pela rodoviária da capital, por exemplo, é monitorado por câmeras usadas para o reconhecimento facial de procurados pela Justiça e pela polícia.
Em cemitérios municipais, sistemas de monitoramento térmico detectam movimentos, mesmo em lugares escuros, com neblina ou na chuva.
Há também o “cerco de segurança” à capital paranaense, com monitoramento de entradas e saídas da cidade, identificando veículos irregulares ou com alerta de furto ou roubo.
As ferramentas fazem parte da chamada “Muralha Digital”, que concentra em um mesmo local todos os sistemas de videomonitoramento de segurança interligados da cidade.
Hoje, há 2 mil câmeras em operação em Curitiba – 69 com tecnologia de reconhecimento facial.
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A prefeitura afirma que todo o projeto da Muralha Digital segue rigorosamente a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e a Lei de Acesso à Informação (LAI), assim como a lei municipal que trata da Política Municipal de Videomonitoramento de Curitiba.
A norma municipal existe desde abril de 2019 e proíbe a cessão, publicação ou veiculação dos dados, informações e imagens do sistema de videomonitoramento municipal, a não ser quando demandadas formalmente pelas autoridades competentes.
Porém, a lei municipal não aborda a questão do reconhecimento facial.
Questionada pelo g1, a prefeitura disse que, atualmente, a tecnologia é usada junto com bases de registros municipais, construídas a partir de diversas fontes de informações relacionadas à administração municipal.
Porém, o município não deu informações detalhadas sobre o conteúdo dessas bases, com a justificativa de que essas indicações não podem ser disponibilizadas por motivos de segurança.
Segundo a Prefeitura de Curitiba, os registros de imagens captados pelas câmeras ficam armazenados por no mínimo 30 dias e somente os gestores da Muralha Digital têm acesso.
De acordo com o Executivo, as imagens ficam à disposição das autoridades e do Poder Judiciário, caso sejam solicitadas.
Centro de Controle Operacional da Muralha Digital, local onde são monitoradas as imagens das câmeras de vigilância distribuídas pela cidade
Daniel Castellano/SMCS
Discussões legislativas
O tema começou a ser discutido na Câmara Municipal de Curitiba no ano passado. A proposta da então vereadora Carol Dartora (PT) buscava restringir o uso de tecnologia de reconhecimento facial na capital paranaense chegou a tramitar, mas foi arquivada na semana passada.
O projeto original previa a proibição do uso indiscriminado do reconhecimento facial na cidade, prevendo que o poder público aplicará restrições quando os sistemas forem utilizados na segurança pública e na identificação em massa de cidadãos em espaços públicos.
O texto recebeu um substitutivo geral que proíbe o poder público de “obter, adquirir, reter, vender, possuir, receber, solicitar, acessar, desenvolver, aprimorar ou utilizar tecnologias de reconhecimento facial ou informações derivadas de uma tecnologia de reconhecimento facial”.
O objetivo do substitutivo foi eliminar a ambiguidade sobre a intenção do projeto e deixar explícito situações em que o uso dos sistemas seria proibido.
O projeto passou quatro vezes pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Na primeira passagem pela CCJ, o colegiado devolveu o texto ao gabinete de Dartora para que fossem feitas adequações no texto.
Na ocasião, a relatora Amália Tortato (Novo) apontou vícios de constitucionalidade que precisariam ser solucionados para que a matéria pudesse tramitar no Legislativo.
Meses depois, em março de 2023, após a proposta de lei receber o substitutivo geral, a comissão sugeriu que o projeto fosse enviado à Prefeitura de Curitiba, para que o Executivo se manifestasse sobre o teor do texto.
Um mês depois, o projeto foi debatido na CCJ pela terceira vez, após a Prefeitura de Curitiba enviar ofício respondendo ao pedido de informações.
Com isso, Tortato novamente emitiu parecer pela devolução ao autor recomendando alterações no substitutivo geral.
Na quarta passagem pela comissão, o projeto foi arquivado por 5 votos a 2.
A justificativa da relatora para o arquivamento é que a medida é desproporcional ao proibir o uso dessas tecnologias de maneira genérica, sem considerar eventuais necessidades do Poder Público.
A vereadora avalia ainda que o projeto de lei permitia a interpretação de que o Poder Público deveria proibir o uso dessa tecnologia pelas empresas privadas.
Liberdade vigiada
Na avaliação do sociólogo Cezar Bueno de Lima, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), o uso do reconhecimento facial como ferramenta da segurança pública é um cerceamento da liberdade do cidadão.
“A gente está vivendo aquilo que nos anos 70 e 80 alguns filósofos chamavam de ‘sociedade de controle’, ou seja, é o super olho do Estado controlando tudo e todos. Esse é o dilema que a gente está vivendo em nome da suposta necessidade de segurança: a gente está entregando a nossa liberdade, a nossa intimidade”, afirma.
Para ele a tendência é mundial.
“Até que ponto a gente suporta perder a privacidade em nome da segurança, ou de uma suposta segurança? Uma pessoa livre admite ser controlada nessa magnitude? Até que ponto efetivamente a gente está discutindo democracia ou até que ponto você está abrindo uma perspectiva de uma sociedade de estado totalitário?”, questiona. Veja a análise abaixo:
Professor da PUC-PR comenta sobre o reconhecimento facil na segurança pública
A advogada Patrícia Peck, especialista em Direito Digital, explica que no caso das ferramentas utilizadas pela Prefeitura de Curitiba, a LGPD pode ser aplicada, ainda que não tenha especificações sobre reconhecimento facial.
“A LGPD não traz especificamente requisitos sobre o uso de uma tecnologia, mas ela se aplica a toda e qualquer tecnologia que trata dados pessoais. […] Quando nós tratamos sobre a aplicação da lei de proteção de dados pessoais, deve-se lembrar que existe um pilar principal que é o da transparência, e que privacidade e segurança andam de mãos dadas”, reitera.
Medo coletivo
Câmera de segurança da Prefeitura de Curitiba
Hully Paiva/SMCS
De acordo com a Prefeitura de Curitiba, em 2022 houve uma redução de até 40% nas ocorrências de crimes em alguns pontos monitorados pelas câmeras da Muralha Digital.
Nos seis primeiros meses de 2022, segundo a prefeitura, cerca de 100 imagens foram cedidas ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e às forças policiais para ajudar a apurar crimes cometidos nas áreas cobertas pelas câmeras.
Monitor da Violência: mortes violentas no Paraná caem 7,9% no primeiro semestre de 2023
Porém, Lima considera que o discurso que baseia a utilização da tecnologia na segurança pública fortalece um sentimento de medo coletivo.
“A gente está vivendo uma sociedade doente, no sentido de que cada vez mais ela acha que está sendo acuada pelo medo. Em parte, ela tem razão, mas, em outra parte, a sensação do medo é muito maior do que o medo em si”, reforça.
Para o professor da PUC-PR, uma lei que regule o uso da tecnologia é fundamental para preservar a população não apenas do governo, mas também de grandes corporações e indústrias de segurança que vendem este tipo de serviço.
“Se for efetivamente justificar a inteligência artificial, as câmeras de segurança para efetivamente minimizar os riscos e pacificar a sociedade, a gente até pode arcar com esses custos, ainda que sejam indesejados. Mas do jeito que está não pode ficar, porque a gente não tem uma legislação. E onde não tem uma legislação, você tá sujeito a todo tipo de violação, seja por parte do Estado, seja por parte de segmentos poderosos que estão vinculados à sociedade de controle do crime”, reforça.
Racismo algorítmico
A proposta apresentada à Câmara Municipal reitera que pesquisas recentes indicam haver mais falhas de reconhecimento entre mulheres e pessoas negras, levando a um grande número de falsos positivos.
No início de setembro, o g1 revelou que um homem inocente ficou preso injustamente por 26 dias após câmeras constatarem 95% de similaridade entre ele e a pessoa que deveria ser presa.
“Boa parte desses algoritmos são treinados para reconhecer rostos a partir de bancos de dados em que não há pessoas racializadas, e nem mesmo mulheres, de forma significativa, resultando em maior dificuldade para algoritmo criar uma assinatura facial acurada para essas populações. Isso pode implicar em muitas pessoas inocentes sendo criminalizadas, sobretudo a população negra”, afirma a vereadora Giorgia Prates (PT), coautora do projeto.
Do ponto de vista jurídico, a advogada Peck explica que existem duas classificações para o tipo de dados:
dados pessoais, que são enquadrados pela LGPD como a imagem, o rosto da pessoa, ou a placa de carro, número do CPF, data de nascimento, endereço residencial e e-mail, por exemplo.
dados pessoais sensíveis relativos à origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, dado referente à saúde, dado genético ou biométrico.
Ambos perpassam a discussão do racismo algorítmico, como esclarece a advogada.
“O que tem acontecido em muitos países é a discussão sobre o uso desse tipo de tecnologia poder trazer algum tipo de viés que eles chamam de ‘bias’, ou seja, tem a ver com a taxa de assertividade. Se houver uma situação de falso positivo, de erro que possa gerar discriminação, preconceito, algum tipo de situação que gere um abuso, por exemplo, da autoridade policial”, exemplifica.
Para o sociólogo Cezar Bueno de Lima, a ideia do controle em nome da segurança mina a democracia e a diversidade.
“Um dos subprodutos dessa sociedade de controle é o inchaço das prisões e a violação de direitos humanos. Há estudos mostrando que esse sistema de controle eletrônico também tem as preferências do ponto de vista étnico racial, por exemplo”, reitera o sociólogo.
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