A relação direta entre investimento nos setores regulados e governança regulatória

A criação das agências reguladoras no Brasil representa um marco importante na história do país, especialmente no que diz respeito à promoção de segurança jurídica e à atração de investimentos privados. Inspiradas no modelo americano, as agências foram concebidas, inicialmente, com o intuito de equilibrar os interesses sociais do Estado e os interesses econômicos da iniciativa privada, em atividades consideradas estratégicas e essenciais, mas que necessitavam do investimento privado.

Nesse sentido, diante da necessidade de atrair investimentos e tornar complementares os interesses públicos e privados, a regulação dessas relações foi delegada às agências reguladoras, entidades públicas, agraciadas com a independência e autonomia necessárias para manter o equilíbrio entre o Estado e o mercado.

A mudança primordial nessa relação se dá no contexto da supremacia inafastável do interesse estatal sobre o privado, que foi substituída pelo equilíbrio entre os interesses do Estado e os diversos atores econômicos do mercado.

Como bem assentou Moreira Neto[1], as agências reguladoras:

“São autarquias que recebem por lei tal qualificação, quando de sua criação, para atuar como órgãos autônomos, destinados a administrar setores em que são desenvolvidas atividades privadas de interesse público, tais como o são os serviços públicos, por delegação (concessões e permissões e institutos afins), bem como as atividades, profissionais ou empresariais, que venham a estar legalmente submetidas a um regime especial de controle destinado a salvaguardar valores específicos, como ocorre com a vigilância sanitária, com o regime hídrico e tantos outros, em listagem em expansão, na medida em que as atividades privadas, em áreas econômicas ou sociais constitucionalmente definidas como de relevância coletiva recebam específico ordenamento público regulador.”

A independência das agências reguladores tem natureza legal, sendo autarquias de regime especial, encarregadas da regulação, controle e fiscalização de serviços públicos, atividades e bens transferidos ao setor privado, com dever de equidistância entre as partes do contrato regulado e dar estabilidade aos interesses públicos coletivos e privados.

Conforme propõe Pedro Gonçalves Costa[2]:

“O papel do consenso e dos esquemas de governação colaborativa tem levados alguns autores a referenciar um estádio de renovação e de transição de um modelo convencional de regulação (nascido com o ‘New Deal’) para um modelo de governança (uma espécie de ‘Renew Deal’) – este caracteriza-se pela interdependência e mútua colaboração ente Estado e mercado, que substitui os esquemas de regulação hierárquica e vertical por modelos de governação horizontal e em parceria, baseados na partilha de responsabilidades e no consenso.”

A instituição de um regime jurídico especial tem o objetivo de preservá-las de ingerências estranhas ao domínio técnico, em especial no processo de tomada de decisões e na fiscalização da ação dos particulares na prestação de serviços públicos ou na gestão de bens públicos.

O certo é, que as agências reguladoras não têm o papel de defender os interesses do governo, nem os das empresas reguladas, e tampouco o dos consumidores, mesmo sendo estes os beneficiários diretos dos serviços regulados, mas sim o papel de objetivamente preocupar-se com o desenvolvimento com a maior eficiência, eficácia e efetividade possível dos serviços a ela submetida.

Mesmo tendo como orientação as políticas públicas estabelecidas pelo governo, a implementação das regras de regulação deve visar a eficiência, a continuidade dos serviços e a modicidade tarifária, trazendo ensejo de complementariedade aos interesses das partes envolvidas.

As políticas públicas são políticas de Estado, a partir dos ditames assentados no processo de eleição dos governantes, que estabelecem as diretrizes objetivando o que seria o interesse geral. Já as políticas regulatórias são instrumentos estabelecidos pelo regulador, a fim de fazer cumprir as políticas públicas estabelecidas.

Nos dizeres de Flávio Amaral Garcia[3]:

“A regulação está diretamente ligada à fase de implementação destas políticas públicas, e o executor passa a ser o agente econômico privado, com o Estado, por intermédio das agências reguladoras, buscando o equilíbrio entre os diversos interesses envolvidos.”

Essencialmente, as agências reguladoras, por serem especializadas e menos burocráticas, são mais ágeis, com respostas mais prontas e assertivas com relação as demandas da economia. Assim sendo, tem papel essencial quando se fala na garantia da segurança jurídica necessária à atração de investimentos privados para os serviços públicos essenciais.

Citando a Professora Lígia Maria Silva de Melo[4]:

“Como princípio do Estado de Direito, a segurança jurídica garante a previsão de comportamentos que devem ser seguidos pela sociedade e que nos são caros, pois definidores do nosso futuro como indivíduos.”

Thiago Priess Valiati[5], no seu “Segurança Jurídica e Infraestrutura: a segurança como dever dos Poderes Públicos e como direito dos agentes econômicos”, ao citar os ensinamentos de Humberto Ávila, apresenta três ideais que, juntos, conformariam a segurança jurídica: a cognoscibilidade, a confiabilidade e a calculabilidade.

O primeiro está relacionado com o conhecimento dos cidadãos, de forma a ser um instrumento que impeça que este atue em desacordo com o ordenamento jurídico, impedindo enganar-se ou confundir-se em relação à ação que realiza. A confiabilidade se refere à busca pela consolidação e estabilidade do Direito. E a calculabilidade seria a noção de continuidade do Direito, impedindo que a ação do Estado surpreenda as pessoas em relação à sua conduta.

Ao fim e ao cabo, para que o Direito seja estável, ele precisa antes ser conhecido. Concretamente, a solução de substituição da prestação direta pelo Estado de serviços públicos pela iniciativa privada pressupõe a celebração de contratos que garantam, as entregas de finalidade pública, a remuneração do parceiro privado, além da previsibilidade e confianças necessárias para seu engajamento.

Em decorrência dos vultuosos investimentos necessários e da remuneração baseada na tarifa paga pelo usuário, fez-se necessário que esses contratos fossem de longo prazo, e com isso, ultrapassassem diversos ciclos políticos, com todos os riscos que essa dinâmica representa.

Nos dizeres de Cristiana Fortini[6]:

“Contratos não são celebrados com as pessoas dos agentes políticos. Todavia, trocas de chefes do Poder Executivo são frequentemente fonte de preocupação. Contratos de longo prazo são ainda mais sujeitos aos humores e considerações dos novos (a) dirigentes, que se sucederão enquanto vigente o vínculo.

Evidente que dúvidas reais sobre a licitude da licitação ou de determinada cláusula contratual podem atormentar a pessoa recém-empossada, porém questionamentos que não se relacionam à adequação à ordem jurídica, mas às escolhas adotadas pelos antecessores, também são comuns.

Ora, ao preparar o edital e seus anexos, os agentes públicos realizam opções que não podem posteriormente ser desconsideradas ao fundamento de que melhor teria sido outro caminho. Alegar que determinada opção, amparada pela ordem jurídica, não deveria ter sido adotada e com isso desestabilizar o contrato gera problemas que ultrapassam os contornos do vínculo. Incertezas, temores, tensões criam atmosfera de desconfiança e podem minar o interesse por novas contratações.”

Em tempos de crises econômica e política em escala global, e de questionamentos da atividade estatal, em que, a partir de fissuras, os atores políticos disputam a hegemonia sem muitos compromissos outros que não a obtenção do Poder, os atores econômicos globais procuram principalmente pela segurança no seu processo de investimento.

Para os investidores, as agências reguladoras têm o papel de garantir regras claras e estáveis, cumprimento dos contratos e regulamentos, e remuneração adequada de seus investimentos.

A questão que se põe é: As agências reguladoras brasileiras estão preparadas para serem os agentes dessa necessária previsibilidade para o investidor? Estão prontas para agir em cenários de instabilidade política e econômica? São aptas a atenuar as consequências desses momentos e credibilizam a Administração Pública perante os investidores?

A intervenção do Estado nas atividades econômicas tem a finalidade de adstringir a atuação pública e privada à ordem e princípios instituídos, podendo, para tanto, atuar de forma diretiva ou indutiva através de instrumentos de natureza regulatória. As agências reguladoras têm como função direta a fixação de normas para as atividades por si reguladas, a fiscalização do cumprimento dessas normas e a mediação dos interesses de agentes, usuários e consumidores.

Em “A Visão da Abar – Desafios da Regulação no Brasil”, Pinheiro[7] descreve:

“A criação das agências reguladoras constitui mecanismo delimitador das fronteiras dos serviços públicos para: fixar normas para a definição de tarifas; fiscalizar o cumprimento dos atos regulatórios; estimular a competência dos prestadores de serviços; e mediar os interesses desses agentes e dos usuários e consumidores, abrindo campo a novos investimentos privados, nacionais e estrangeiros. Nesse afã, as agências devem ser autônomas frente aos governos e ao mercado, em função dos interesses públicos envolvidos.”

Além da função precípua das agências reguladoras, de dirimir conflitos e atuar em crises especificas ocorridas no setor objeto de sua atuação, as agências têm papel fundamental de criação das condições de confiabilidade do processo de transferência de serviços públicos ao setor privado, diante de cenários de instabilidade política ou econômica.

Para que se cumpra essa expectativa, é essencial que, em sua atuação, as agências se pautem pelo equilíbrio de interesses, com imparcialidade, agilidade e eficiência. A regulação é veículo de implementação de políticas públicas com dever de conciliação de condições de previsibilidade, estabilidade e flexibilidade nos mercados.

O papel das agências, aproximando-se dos agentes econômicos, tem o condão de assentar a credibilidade junto aos investidores. A independência, a participação popular e o controle social são pilares desse processo e se dão principalmente através da transparência, consultas públicas e prestações de contas.

Como vemos no volume 8, da Revista do BNDES:

“[…] a transparência é fundamental para se garantir a legitimidade social à atuação independente da agência. Nesse sentido, ela deve assegurar, por meio de estruturas estatutárias e mecanismos práticos, a maior quantidade possível de canais de comunicação com os consumidores e seus órgãos de representação, de forma a obter uma visão pluralista e balanceada dos pontos de vista específicos dos grupos de interesse. Para auxiliar essa tarefa, a agência deve utilizar a prática usual de elaboração de consultas públicas, em audiências prévias às tomadas de decisões e com a publicação de documentos preliminares para a apreciação dos interessados.”[8]

No momento em que vivemos, onde os riscos tomam proporções cada vez maiores, gerados inclusive, muitas das vezes, pela velocidade do avanço tecnológico da indústria, idas e vindas em decorrência dos interesses políticos do momento, somente a existência de um órgão dotado de conhecimento especializado da área em questão, independente e legitimado pela participação e pelo controle social, é capaz de atenuar cenários de instabilidade que volta e mais surgem.

Nesse cenário, a independência e autonomia das agências reguladoras é requisito essencial ao atingimento de sua finalidade. A existência da figura do regulador independente, é vista pelo mercado como sendo um compromisso do governo com a restrição de interferência futura nos serviços regulados.

A atuação forte e regular das agências, com especialidade técnica e independência decisória, contribuem para a diminuição da percepção de risco pela iniciativa privada, o que não significa que os riscos deixam de existir, mas eles diminuem sobremaneira, visto que há garantia de cumprimento do contrato firmado entre as partes.

A criação das agências reguladoras no direito brasileiro decorreu diretamente da necessidade de previsibilidade, segurança jurídica e independência perante o poder político, de atrair o investidor privado e garantir serviços adequados à sociedade e de proporcionar uma maior qualidade e efetividade na atividade regulatória, bem como de manutenção de um ambiente saudável, que reforce a atração de investimentos e o aumento de competitividade.

Por ser relativamente nova a implantação do regime de agências reguladoras no Brasil, a oferta de serviços é ainda, na sua maior parte, provida diretamente pelo Poder Público e a consequência direta disso, é que esta oferta é limitada pela reduzida capacidade de investimento. Em áreas essenciais, a universalização do acesso é imperiosa, e, portanto, a participação do investidor privado deve ser não apenas aceita, mas incentivada.

Os dispositivos regulatórios são fundamentais neste processo e devem estimular a participação privada, devendo debruçar-se sobre as condições de competição e de oferta dos serviços regulados, a eficiência e eficácia desses serviços e o impacto da regulação nos investimentos.

Diante desse desafio, as agências vem respondendo a essas expectativas. É possível identificar resultados altamente positivos na atuação de nossas agências, tais como, o aumento dos investimentos nos setores regulados e a ampliação do acesso aos serviços.

Concluindo, desde o início dos anos 90, o Brasil vem trabalhando num processo de redução da intervenção direta do Estado, e no fortalecimento dos órgãos regulatórios. Quanto maior a vulnerabilidade a desequilíbrios da cultura política, maiores são os desafios para compensar estes desequilíbrios. Essa situação aumenta a importância da estruturação das agências, com principal atenção à independência e à transparência do processo decisório, além do arcabouço legal que baliza seus procedimentos.

Assim, ampla divulgação de normas e procedimentos de acesso, o uso de diversos veículos para prestação de contas e esclarecimento dos diferentes públicos são essenciais para que se confira a necessária segurança jurídica aos atores do mercado interessados no investimento em serviços públicos.

[1] In Curso de Direito Administrativo: Parte introdutória, parte geral e parte especial. Ed.16. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 256/257.

[2] In Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 73.

[3] In Concessões, Parcerias e Regulação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 81.

[4] In Segurança jurídica: fundamento do Estado de Direito. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 6, n. 25, p. 133-144, jul./set. 2006.

[5] In Segurança jurídica e infraestrutura: a segurança como dever dos poderes públicos e como direito dos agentes econômicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 14-15.

[6] In Novos investimentos e o ambiente dos contratos celebrados com a administração. Consultor Jurídico, 10 jan. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-10/interesse-publiconovos-investimentos-ambiente-contratos-administracao. Acesso em: 28 ago. 2023.

[7] In A visão da Abar – Desafios da Regulação no Brasil. Brasília: ENAP, 2009, p. 42.

[8] PIRES, José C. Linhares; GOLDSTEIN, Andrea. Agências Reguladoras Brasileiras: Avaliação e Desafios. Revista do BNDES, Rio de Janeiro; Vol. 8, nº. 16, pp. 3-42, Dez./2001, p. 12.

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