Ambulancioterapia revela ‘buracos’ na assistência médica do SUS; vai e vem de pacientes provoca 4 milhões de deslocamentos no país

Levantamento cruzou dados do Tesouro Nacional e do Ministério da Saúde. Ao menos 12% da população brasileira mora em municípios com pouca ou nenhuma assistência ambulatorial ou hospitalar, o que leva os moradores a ir a outras cidades em busca de exames ou tratamentos. Mais de 27,1 milhões de brasileiros – ou 12% da população brasileira – estão concentrados em 2.775 municípios com pouca ou nenhuma assistência ambulatorial ou hospitalar, o que leva os moradores a se deslocar para outras cidades quando precisam fazer exames ou tratamento de doenças. Já em outros 700 municípios, os atendimentos hospitalares de pessoas de fora chegam a quase 70%.
O vai e vem diário de pacientes nas estradas de todo o país é conhecido pelo termo ‘ambulancioterapia’. Foram mais de quatro milhões de viagens desse tipo no Brasil em 2021.
Naquele ano, cerca de um terço dos atendimentos médicos foi prestado a pacientes fora da sua cidade de origem.
Os números foram levantados pelo Tesouro Nacional com base nos dados do Ministério da Saúde e do IBGE (siga lendo a reportagem e entenda).
Especialistas em saúde pública ouvidas pelo g1 afirmam que a busca por tratamentos de saúde em outras cidades revela vazios assistenciais nas regiões de saúde do SUS, o que leva pacientes a percorrer longas distâncias em busca de atendimentos por não terem o serviço ofertado no seu município de origem ou em uma cidade próxima, que faz parte da mesma região.
Você sabia? O SUS é organizado por regiões e macrorregiões de saúde. Municípios próximos são divididos em grupos em cada estado, com o objetivo de corrigir as desigualdades no acesso à saúde. Nem toda cidade tem condições de ter um hospital, mas ela precisa estar dentro de uma região que tenha.
Com isso, cidadãos de municípios menores, com pouca assistência, podem se deslocar para cidades maiores, no mesmo espaço regional, que ofertam serviços de saúde especializados, como uma consulta a um oftalmologista ou a busca por tratamento de hemodiálise. O ponto de preocupação não é apenas o deslocamento de pacientes, mas sim o tamanho desse deslocamento.
Nesta reportagem, você vai saber mais sobre:
Dados sobre a ambulancioterapia no Brasil
O ranking das cidades com maior entrada e maior saída de pacientes
As possíveis soluções para o vai e vem de pessoas em busca de atendimento
1 – A ambulancioterapia no Brasil
Na maioria dos casos, o deslocamento de pacientes começa em municípios menores, que não possuem hospitais ou serviços de saúde especializados via SUS para atender demandas de saúde mais complexas, como tratamento de câncer ou a realização de um parto em uma maternidade.
Esses pacientes são levados para cidades maiores, com mais autonomia hospitalar. O transporte ocorre em veículos disponibilizadas pelas prefeituras: na maioria das vezes, são grupos de 10 a 20 pacientes dentro de vans (daí a origem do termo ‘ambulancioterapia’).
Até então, não havia números detalhados sobre o fenômeno no Brasil. Fernando Barbalho, cientista de dados do Tesouro Nacional, fez um cruzamento de plataformas do governo federal para tentar um diagnóstico mais próximo da realidade. Foram usados os bancos de dados do Ministério da Saúde e do IBGE, além do próprio Tesouro.
Fazendo uma análise das informações dos atendimentos hospitalares nas cidades e o endereço de moradia dos pacientes, Barbalho dividiu os municípios brasileiros em quatro grupos, com base nas Regiões de Influência das Cidades (REGIC), do IBGE. São eles: entrada moderada, saída fraca, saída moderada e saída forte.
Entrada moderada: formado por 700 municípios que se destacam mais pelo recebimento de pacientes de outras cidades do que pela saída. Um exemplo é Guaçuí (ES): o percentual de atendimentos de paciente de outros municípios é 45,9% e o percentual de saída de é 30,3%;
Saída fraca: formado por 1.020 municípios que conseguem dar conta da maioria dos seus pacientes, mas proporcionalmente não recebem tantos pacientes de fora. É o caso de São Paulo (SP), que tem 4,5% de saída de pacientes e apenas 16% de entrada;
Saída moderada: são 1.075 municípios. Aqui, mais de 50% dos atendimentos hospitalares ocorrem em outra cidade. Um exemplo é Nova Ipixuna (PA) com saída de 64,2% dos pacientes e entrada de 4%;
Saída forte: é o maior grupo, formado por 2.775 municípios. De 80% até 100% dos atendimentos hospitalares são fora das cidades de origem. Vila Propício (GO) representa o grupo com 100% de saída de pacientes e 0% de chegada.
O levantamento não leva em conta as mais de 450 regiões e macrorregiões de saúde do SUS. Mas mostra de uma forma mais ampla o que na prática já acontece: a movimentação de pacientes de cidades do interior rumo a grandes cidades, principalmente para as capitais.
Há também uma desigualdade financeira: municípios com entrada moderada costumam ter gastos maiores do que cidades que possuem uma saída forte de pacientes – até porque a maioria das cidades desse último grupo são pequenas e nem sequer tem um hospital ou uma unidade ambulatorial.
Muita gente mora em cidades que não têm hospital. E não é para ter hospital em toda a cidade. Em termos de custo, eu fico mais preocupada em ter hospitais de pequeno porte que não resolvem nada em cidades pequenas do que no deslocamento das pessoas.
Para Marília, o ponto central da discussão envolvendo a ambulancioterapia não é apenas o deslocamento de pacientes, mas sim o tamanho desse deslocamento. Ou seja: quantos quilômetros as pessoas estão percorrendo em busca dos serviços de saúde do SUS – e por que isso acontece.
“Se um paciente que precisa fazer hemodiálise duas a três vezes por semana e, para isso, percorre um caminho muito longo, é desumano. Mas municípios pequenos não tem condições de gerenciar um serviço tão complexo como a hemodiálise”, afirmou a professora.
O brasileiro percorre, em média, 72 quilômetros para receber atendimento médico e 150 quilômetros para fazer cirurgias e outros procedimentos, segundo um levantamento feito pelo IBGE em 2020.
Mas, na prática, há quem precise cruzar o Brasil de uma ponta a outra para conseguir atendimento.
2 – Ranking das cidades
Recife (PE) é a cidade que mais recebeu pacientes de fora em 2021, de acordo com os dados, seguida de Belo Horizonte (MG) e São Paulo (SP).
A capital pernambucana atrai moradores de cidades vizinhas, como Olinda e Jaboatão dos Guararapes, mas também absorve pacientes do interior, de estados do Nordeste e até de outras regiões do país.
É comum ver pacientes do Acre sendo atendidos em Recife, contou a professora Bernadete Perez, do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – nesses casos, a distância da moradia até o atendimento médico é de quatro mil quilômetros.
A região norte é a mais desigual na concentração de serviços de saúde. Por isso, temos pessoas do estado do Acre vindo até Pernambuco para algumas situações de saúde. É inadmissível que, no século 21, ainda exista isso.

Para ela, vários motivos colocam Recife no topo da lista. Entre eles, uma desassistência da atenção primária, agravada pela pandemia da Covid-19, e uma multiplicação, nos últimos dez anos, de unidades de saúde que oferecem serviços médicos especializados.
“Essas unidades são um laboratório de especialidades, sem vínculo terapêutico com o usuário, pautadas em consultas rápidas e alternando com diversos especialistas. A abertura desenfreada desses equipamentos fará com que as pessoas não consigam ter em seus territórios o acompanhamento longitudinal, que é feito ao longo da vida, de forma singular”, afirmou Bernadete.
Você sabia? No SUS, a média e alta complexidade são os serviços encontrados apenas em hospitais e ambulatórios, divididos por especialidade médica (cardiologia, oncologia, pediatria, etc). É diferente da atenção primária, que são os serviços oferecidos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), locais onde geralmente ocorre o primeiro atendimento e encaminhamento para as especialidades.
A lista das 10 cidades que mais tiveram pessoas se deslocando para outros municípios é basicamente composta por cidades de regiões metropolitanas. No top 3, estão Jaboatão dos Guararapes (PE), São Paulo e Olinda (PE). A capital paulista aparece aqui pelo fator populacional.
No topo da lista de cidades com maior número de atendimentos hospitalares locais, ou seja, o paciente sendo atendido no local de moradia, estão São Paulo, Rio de Janeiro (RJ) e Brasília (DF).
O levantamento do ranking de cidades foi feito com base em uma amostra aleatória de mais de 1 milhão de internações hospitalares ocorridas em 2021 no Brasil.
3 – Como diminuir as distâncias
Uma solução para o vai e vem de pacientes, segundo a professora Bernadete Perez, está no reforço do atendimento nas regiões de saúde, começando pelos serviços oferecidos nos postos de saúde. Isso, segundo ela, pode fazer com que a quilometragem rodada pelos pacientes cesse ou seja encurtada.
“A gente não precisa de um hospital com 10 salas de cirurgia a cada quatro ou cinco municípios. Você tem que trabalhar as regiões de saúde garantindo que 80% dos problemas mais prevalentes possam resolvidos no próprio local onde as pessoas vivem ou muito próximo de lá”, disse Bernadete.
Um exemplo é o pré-natal, exame de acompanhamento da gestação e que pode ser iniciado no SUS pelo posto de saúde, sem necessidade de procurar um hospital.
Recentemente, teve uma ambulância que estava vindo para Recife e sofreu um acidente. Ela saiu de um município que fica quase 400 quilômetros de distância da capital para levar uma paciente gestante para fazer um pré-natal de baixo risco. No acidente, faleceram a mulher, o bebê e o motorista.
A professora da faculdade de Saúde Pública da USP, Marília Louvison, tem o mesmo pensamento. Para ela, o deslocamento de pacientes precisa ser estudado regionalmente. E é preciso investir na descentralização dos serviços, ou seja, levar a saúde pública o mais próximo possível das pessoas.
“Que a gente possa fortalecer as regiões de saúde para que elas tenham suficiência de oferta de serviços do SUS para garantir o menor deslocamento possível, com a maior qualidade possível, e com sistemas de regulação e de transporte sanitário com apoio financeiro e dignidade no deslocamento”, afirmou Marília.
“Tem regiões que a maternidade fechou, nem parto ocorre naquela região. Então a paciente vai necessariamente para outra cidade, outra região, que é mais longe. Isso são vazios assistenciais. É preciso planejamento regional para investir e reduzir esses vazios e diminuir esse deslocamento quando ele, de fato, se mostrar um problema”, colocou a professora da USP.

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