O que falta para liberarmos os alimentos de cânhamo no Brasil?

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“O sistema alimentar como um todo, que inclui produção e processamento de alimentos, transporte, consumo no varejo, perda e desperdício, é atualmente responsável por até um terço das nossas emissões globais de gases de efeito estufa”, afirma Eduardo Calvo Buendía, co-presidente do Painel Intergovernamental das Alterações Climáticas da ONU.

A transição para dietas baseadas em plantas, além de trazer benefícios substanciais para a saúde humana, tem o potencial de diminuir significativamente o impacto ambiental associado ao consumo alimentar. Essa mudança pode resultar em uma redução de 76% no uso de terras, 49% nas emissões de gases de efeito estufa, 49% na eutrofização, e 21% e 14% no uso de água verde e azul, relacionados à alimentação. E um dos principais aliados para essas alterações são os alimentos de cânhamo, proibidos sem justificativa técnica no Brasil.

O cânhamo é uma variedade da planta Cannabis sativa L. com baixo teor de THC, sem efeitos psicotrópicos, utilizado na fabricação de diversos produtos, incluindo alimentos. Ele é legal em quase todos os países do mundo.

A principal norma que regula a comercialização do cânhamo industrial no país é a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961. Essa convenção cria uma proibição geral para a cannabis entorpecente, mas cria, também, uma exceção clara para cânhamo industrial:

ARTIGO 28

Fiscalização da Canabis

  1. Se uma Parte permite o cultivo da planta da canabis para a produção da canabis ou de sua resina, será aplicado a esse cultivo o mesmo sistema de fiscalização estabelecido no artigo 23 para a fiscalização da dormideira.

  2. A presente Convenção não se aplicará ao cultivo da planta de canabis destinado exclusivamente a fins industriais (fibra e semente) ou hortículos.

Por esse motivo, praticamente todos os países são signatários dessa convenção e, ao mesmo tempo, permitem a importação, comercialização ou produção de alimentos de cânhamo. Nos Estados Unidos, por exemplo, esses produtos são encontrados normalmente no Walmart e em outros mercados. O Paraguai é o maior produtor de cânhamo da região e se destaca como exportador de alimentos para Europa e América do Norte.

A Argentina pretende fazer investimentos robustos na produção e indústria de alimentos de cânhamo. A China é o principal produtor mundial de cânhamo, com cerca de 70% da produção global. E, nos últimos anos, experimentou um crescimento significativo devido ao aumento da demanda por produtos derivados de cânhamo, como óleo de CBD, fibras de cânhamo e sementes. De acordo com um relatório da Grand View Research, o mercado global de cânhamo industrial deve crescer a uma CAGR (Compound Annual Growth Rate) de 15,8% entre 2021 e 2028, com a China sendo um contribuidor chave para esse crescimento.

No Brasil, contudo, a Portaria 344/98 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) criou uma proibição para a cannabis sem fazer uma distinção ao cânhamo industrial. Por isso, e sem justificativa técnica de risco para essa proibição, atualmente vigente por uma norma de 1998, os alimentos de cânhamo são proibidos no país.

A Convenção Única de 1961, internalizada no Brasil em 1964, é expressa em excluir o cânhamo da proibição da cannabis psicotrópica. As outras normas não criam restrições específicas para o cânhamo e só regulam substâncias psicotrópicas ou tóxicas – o que não é, empiricamente, o caso do cânhamo.

Na União Europeia, onde os Estados-membro são igualmente vinculados pela Convenção Única de 1961, os operadores podem comercializar produtos derivados de cânhamo, desde que sejam respeitadas as disposições estabelecidas nos regulamentos da UE. “A legalidade dos alimentos derivados das sementes de cânhamo nunca foi questionada na Europa. Conforme estabelecido na Convenção Única de 1961, sementes e folhas da planta de cânhamo estão excluídas do escopo da Convenção” afirma Lorenza Romanese, diretora-executiva da Associação Europeia de Cânhamo Industrial (EIHA, na sigla em inglês).

Esses alimentos são alimentos comuns, já que as sementes não produzem canabinoides. As sementes de cânhamo têm uma densidade proteica muito grande, com uma média de 33g de proteína a cada 100g de sementes. São ricas em fibras e ácidos graxos essenciais, como ômega-3 e ômega-6. De acordo com um estudo publicado no jornal Food Chemistry, a proteína de semente de cânhamo contém todos os nove aminoácidos essenciais, tornando-se uma fonte completa de proteína.

Além disso, o cânhamo é uma das plantas mais sustentáveis do mundo, podendo sequestrar até 15 toneladas de dióxido de carbono por hectare de terra cultivada. Seu crescimento é rápido e pode atingir a maturidade em apenas alguns meses, tornando-se um sumidouro de carbono altamente eficiente.

O cânhamo pode, também, ser usado em uma variedade de produtos sustentáveis, incluindo têxteis, materiais de construção e biocombustíveis, o que pode ajudar a reduzir a pegada de carbono de várias indústrias. De acordo com um relatório da Associação Europeia de Cânhamo Industrial, o cultivo de cânhamo tem o potencial de reduzir as emissões de dióxido de carbono em até 1,5 tonelada por tonelada de cânhamo colhido, tornando-se uma ferramenta promissora para mitigar as mudanças climáticas.

Estudos realizados no Paraguai nos últimos três anos apontam para uma capacidade muito mais elevada do que foi identificado pela EIHA, muito provavelmente devido às vantagens da agricultura tropical e maior produção de biomassa, onde resultados de até 72 toneladas de carbono removido por hectare de produção foram encontrados em lotes de alta performance.

Observando esses dados e a ausência de justificativa jurídica e de risco sanitário para a comercialização de alimentos de cânhamo no Brasil, precisamos lembrar que um país que passa fome e sofre com as mudanças climáticas não pode se dar ao luxo de proibir alimentos que têm o potencial de amenizar o aquecimento global e reduzir o uso de água pelo agronegócio.

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