Lei Maria da Penha prevê grupos de reflexão para agressores, e PR tem 67 unidades: ‘Não há como rompermos cultura machista sem dialogarmos com os homens’

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Grupos atuam para incentivar a desconstrução do machismo e inibidor feminicídios. Em caso de descumprimento, assim como em outras medidas protetivas, agressor pode ser preso. Promotores explicam funcionamento de grupos reflexivos para autores de violência doméstica
Evitar a continuidade do ciclo da violência contra mulheres e impedir feminicídios.
Estes são os objetivos dos grupos de reflexão para homens autores de violência doméstica – uma das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha desde 2020.
Pouco conhecidos para alguns e totalmente desconhecido para muitos, esses grupos agem para desconstruir o machismo e inibidor feminicídios. São 67 grupos existentes no Paraná distribuídos em 60 comarcas, conforme levantamento do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero (Nupige).
Assim como as demais medidas protetivas, em caso de descumprimento, o agressor pode ser preso. Entenda funcionamento abaixo.
O encaminhamento do agressor ocorre por determinação direta do Poder Judiciário ou por meio do pedido de uma promotoria.
A assistente social Adriéli Volpato Craveiro, do Ministério Público do Paraná (MP-PR), explica que os grupos têm caráter pedagógico e contribuem para desconstruir a visão de homens sobre a masculinidade dominante, que cria a impressão que para ser homem é necessário o uso da violência em conflitos.
“Não há como rompermos a cultura machista da sociedade, e que tanto influência violência contra a mulher, sem dialogarmos com os homens. E repensarmos a construção da masculinidade. Precisamos de momentos que estimulem reflexões e contribuam com a consciência crítica do sujeito”, detalhou a assistente social.
O Brasil teve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com 2021, aponta levantamento feito pelo g1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.
Foram 1,4 mil mulheres mortas apenas pelo fato de serem mulheres. No Paraná, 77 mulheres perderam a vida violentamente.
Os dados da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), mostram que o Poder Judiciário emitiu 40.046 medidas protetivas de urgência em 2022 – destas, o tribunal não sabe informar quantas enviaram homens para grupos reflexivos.
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A aplicação dos grupos reflexivos
O promotor Thimotie Aragon Heemann coordena grupos nas comarcas de Campina da Lagoa e Santo Antônio do Sudoeste, que juntas atendem cinco municípios da região centro-oeste e sudoeste.
Por esses grupos passaram 140 homens em quatro anos anos. Nenhum voltou a cometer atos de violência doméstica contra as companheiras ou ex-companheiras, de acordo com monitoramento do MP-PR.
“A gente já viu que a utilização única e exclusiva do direito penal em matéria de violência contra a mulher não resolve o problema […]. Então, eu vejo esses grupos reflexivos como uma verdadeira revolução na diminuição dos índices de violência contra a mulher no Brasil. E, principalmente, na prevenção também de possíveis feminicídios.”
Formado por equipes multidisciplinares, de profissionais de direito a psicólogos, os grupos funcionam como uma medida que vai além do encarceramento, obrigando homens agressores a reverem, analisarem e corrigirem ações violentas contra mulheres que são estimuladas pelo machismo, enraizado socialmente.
Os grupos são formados por órgãos da Rede de Proteção – como prefeituras, delegacias, Centros de Referência de Assistência Social, além do Sistema de Justiça, que inclui o Poder Judiciário e Ministério Público.
Grupos instalado em uma comarca pode atender mais de um município, a depender da coordenação
RPC/g1
Entre os grupos ativos no Paraná, está um que funciona em Cianorte, no noroeste do estado, desde meados de 2017.
Até abril deste ano, 787 pessoas passaram pelo programa. Destas, quatro voltaram a cometer violência doméstica.
“Nós consideramos que o nosso projeto tem um ótimo resultado. E é bacana você verificar que quando você termina o grupo, tem homens que pedem para participar de novo. Inclusive trazendo as suas mulheres, quando ainda conseguem manter o relacionamento […]. Questão de ideias é que pode mudar alguma coisa e esses grupos reflexivos é exatamente pra isso”, explicou a promotora Elaine Lopo Rodrigues, uma das coordenadoras.
Conforme a promotora, as equipes multidisciplinares de cada grupo ao redor do Paraná possuem liberdade para escolher a periodicidade dos encontros, locais e abordagem com os autores de violência.
No programa de Cianorte, por exemplo, o programa de reflexão tem quatro encontros por grupo, que ocorrem no fórum da comarca.
Já no grupo de Santo Antônio do Sudoeste, os encontros são realizados em espaços fora do Sistema de Justiça.
“Esses homens não deixam só de praticar aqueles atos anteriores que eles vinham praticando: ameaça, lesões corporais, stalking, perseguição, violência psicológica. Eles deixam de praticar todo e qualquer ato de violência contra a mulher […]. Eles mesmos percebem ao longo das reuniões o quanto aquele comportamento não é um comportamento só deles, mas é um comportamento da sociedade”, explicou Thimotie.
Para a promotora Elaine, os grupos têm um potencial de transformação não apenas do homem autor de violência, mas também de pessoas próximas, incluindo a própria família.
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Grupos reflexivos de homens agressores funcionam em 60 comarcas do Paraná
jcomp/Freepik
De acordo com o promotor Thimotie, os homens que participam destes grupos são encaminhados, na maioria das vezes, de forma compulsória – seja por medida protetiva, seja por condenação em crimes menos graves que o feminicídio.
Ele lembra que, no início dos encontros, os homens normalmente não querem participar. Mas a permanência deles é estimulada, justamente, porque os encontros são determinados por ordem judicial – ou seja, se um homem faltar, estará descumprindo medida protetiva, podendo ser preso.
Apesar de não apagar os crimes que ocorreram, o promotor Thimotie avalia que os grupos geram uma reação em cadeia, fazendo que o homem não volte prejudicar eventuais futuras companheiras com um comportamento fruto do machismo.
“A gente tem que lembrar que homens autores de violência não possuem um perfil traçado. Eles não são aquela pessoa com um longo histórico de condenações criminais, filiado a uma organização criminosa […]. O objetivo prioritário é a prevenção do feminicídio, mas também inibir a reincidência dos homens autores, seja qual for o grau de violência praticado anteriormente por eles.”
Efetividade dos grupos X desconhecimento de uso como medida protetiva
Ainda que os grupos apresentem bons resultados no Paraná, como indica a avalição de promotores do MP-PR, o encaminhamento de autores de violência para instâncias como estas pode, ainda, estar além do necessário, conforme observa o promotor Thumotie.
Para Thimotie, isto acontece por dois motivos: desconhecimento da possibilidade dos grupos como medida protetiva, somado à baixa quantidade de grupos como estes não só no Paraná, mas no país.
“Então, eu venho defendendo que ao menos um grupo por comarca deve existir, por conta da previsão da Lei Maria da Penha […]. Eu venho defendendo que exista, inclusive, uma obrigação dirigida ao Estado, de uma maneira geral, sob pena de nós termos duas espécies de medida protetiva sem eficácia social”, explicou o promotor.
Medidas protetivas de urgência no Paraná ao longo dos anos
RPC/g1
Estímulo à criação de grupos no Paraná
Com iniciativas espaçadas no Paraná, a criação dos grupos como política pública de enfrentamento à violência doméstica demonstra estar restrita, por ora, à força de vontade de agentes isolados.
Desde 2020, por exemplo, o Estado possui uma legislação (Lei 20.318) que normatiza a criação de grupos reflexivos no Brasil, entretanto, não obriga que todos os municípios tenham instâncias do tipo.
No Governo do Paraná, a recém-criada Secretaria da Mulher e Igualdade Racial (Semi) afirmou que a pasta ainda não tem nenhum projeto desenvolvido ou executado para os grupos, entretanto, disse ser favorável a modalidade e estar “desenhando uma proposta”.
Paralelamente, promotores do MP e outros agentes da Rede de Proteção às Mulheres oferecem, por conta própria, mecanismos que podem ajudar municípios interessados a formarem grupos de reflexão.
Em nota, o TJ-PR avaliou que embora o Paraná se destaque “pelo número e qualidade das iniciativas”, ainda enfrenta dificuldades de implantação e manutenção dos grupos.
Entre os pontos que a Justiça cita, por exemplo, está a ausência de uma política nacional para estrutura técnica e profissional, além da falta de sistematização dos programas, o que pode permitir que outros grupos sejam iniciados de forma frágil ou simplista.
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